terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Contos Fantásticos


                          Em Algum Lugar Do Planeta Dos Macacos

                                                    Ademário Ferreira



                 Os robôs são máquinas que ainda preservam a voz humana. De tanto deixarem de lado o costume da conversa, as pessoas atrofiaram a língua. Aqueles poucos humanos que tem o dom da palavra vivem recônditos, rodeados por discípulos que procuram estar sempre atentos a qualquer palavra. Em alguma caverna, em algum ponto do planeta, vive Homero, arqueólogo que resolveu morar ali há vários anos, desde quando descobriu naquele local, grande achado arqueológico, uma imensa biblioteca com os livros daqueles escritores considerados entre os maiores pensadores de todos os tempos. Eram poucos os humanos com recursos para ter constante acesso às redes de computadores, para  humanos pouco desenvolvimento tecnológico.
         Homero quer o saber. Inventa, estuda com os velhos papéis de antigamente, os papiros, uma enciclopédia universal com inúmeras obras, pensadores de todos os países em cada época, o que pôde ser registrado, conservado através de um produto gasoso, permeado com spray. Depois da guerra bacteriológica, quando houve a desintegração de todo material de papel, tudo que era feito do papiro viraria pó. A guerra do papel havia sido a última grande guerra, de lá para cá, os macacos procuraram manter a calma no planeta. Não existem muitos recursos naturais para desenvolver grandes projetos, poucos são os macacos possuidores exclusivos de certos aparelhos como computadores, televisores, mas entre eles há uma espécie de sociedade, é uma convenção que permite a todos o acesso aos aparelhos, através de locações, permutas ou centros culturais.
          A segregação aos humanoides é ponto crucial. Desde a guerra do papel, os problemas com os homens eram assuntos vagos. Aquelas tristes pessoas reclusas em guetos tinham perdido todas as chances que os tornassem esperançosos de um futuro melhor. Grande parte do planeta está impróprio para a plantação, é tanta incredulidade e alienação que inexistem desejos de felicidade ou de qualquer coisa. A devastação não foi somente dos papéis, algo foi devastado na memória daquela gente.       
          Assim, poucos macacos sabiam o que outros não imaginavam, que existem homens com a  inteligência de Homero e outros que seguem-no, ouvindo, aprendendo a falar e contar histórias, cálculos misteriosos sobre a existência da vida. Humanoides não podem pensar, nem falar, nem reunirem-se em praça pública, nem realizar conjuração, insurreições, não podem ser capazes de arquitetar tais ações. São palavras de ordem entre os macacos que vivem em torno da exploração do trabalho escravo e procuram a todo custo manter o poder a seu favor, afim de sempre viver com suas mordomias.
          Em algum momento, o conselho superior dos macacos descobriu a existência de Homero  e mandou verificar sua origem. Seus pais haviam sido dados como mortos quando há cinquenta anos conseguiram escapar de um centro de pesquisas com seres humanos. Houve um projeto que consistia em dar aos homens acesso às letras, à pintura, ou eram treinados para serem servos. O casal conseguiu escapar com a ajuda de um macaco cientista que se afeiçoara aos humanos. Jamais foram encontrados, nem notícia nunca se teve, tudo indicava que tinham ido para regiões íngremes e selvagens. A mulher estava grávida. Resolveram fugir, pois perceberam o interesse exclusivamente científico em torno deles, eram cobaias, logo seriam descartados. Quando descobriram, através do arquivo morto do instituto de pesquisas, que antes da guerra do papel em determinado lugar haviam construído um abrigo anti-bacteriológico onde encontrava-se protegido e intacto, um acervo no qual estavam contidas as mais diversas obras de arte, inclusive uma biblioteca com assuntos de todos os interesses, a origem de tudo, fugiram.
          Durante a guerra, o papel foi destruído como símbolo do apagar das luzes da memória, deixando inerte e escura a mente humana, tornava-se enorme o custo para fabricação de qualquer aparelho elétrico, os macacos detinham o controle político. O papel ressurge e, de forma impressa, traz de volta a luz para muitas pessoas. Os pais de Homero morreram, deixando o tesouro para seu filho e para a humanidade.    



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A Nave

                         Ademário Ferreira

        Em uma era distante, em outro planeta diferente uma tragédia estava prestes a acontecer. Uma nave inimiga atacou tal planeta indefeso. Diante da gigantesca aeronave, os habitantes daquele mundo estavam aterrorizados, quase ninguém entendia a situação.
       De dentro da nave, uma mensagem foi transmitida informando que o planeta inteiro seria destruído, porém antes da destruição algumas pessoas seriam salvas e fariam parte de sua tripulação.
      De fato, algumas pessoas foram salvas, levadas a um compartimento semelhante a uma imensa sala, com cadeiras, igual um cinema. Seriam apresentadas ao comandante que iria ser visto na tela como numa película.
      Surge, então, o rosto do comandante, pronunciando para toda a plateia atenta, as seguintes palavras: Eu sou Deus.


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Albert X E As Estranhas Aventuras Em Sua Mente
                           Ademário Ferreira
           Minhas histórias surgem nas noites mais escuras, pelas estradas sertanejas, com a lua encoberta por nuvens pretas. O vento é refrigério combinando com o calor, tornando agradável a caminhada. Albert X pensava.
       De fato, a noite está fria, mas o corpo em movimento se mantém aquecido. As paisagens noturnas, os galhos de árvore, as casas, o branquidão da estrada que segue, pássaros negros na escuridão, pessoas que disseram quase simultaneamente: boa noite!
          Chega em casa. Sentiu-se em casa. Iria passar pouco tempo naquele lugar,  no meio da caatinga, viera de uma grande cidade, estava ali pela primeira vez, à procura de casos para contar. A casa de quatro cômodos ao centro do terreno, o quintal na frente, a uns vinte metros a cerca na beira do caminho. Bem em frente, do outro lado da estrada, uma sepultura de um antigo morador. Albert X encontra um vaqueiro da região e relembra um acontecimento da noite anterior, quando à hora do crepúsculo tangia o jegue cangalhado com os baldes vazios balançando, para buscar água.
          Quando havia escurecido, Albert aproveitou para banhar-se no rio, represado naquele trecho. Naquele instante percebeu algo luminoso viajar no céu, fazendo com que a noite de repente parecesse dia por três segundos. Em tão pouco espaço de tempo, deu para ver tanta coisa impossível de se ver no escuro. O verde das plantas, a pintura das construções, as linhas demarcando o campo de bola. Quem estava ali naquele momento, viu. Como uma pedra de fogo ou brasa de algum cometa em chamas.
        Diversas foram as opiniões dos moradores daquela localidade. Estrela cadente, calda de cometa, ouro mudando de serra que caiu no mar. Naquela noite e em tantas outras se falou sobre aquele acontecimento. Era o fogo do céu deixando cair suas faíscas na terra. Albert X não morava mais na metrópole, incrível foi aquela mudança, surpreendente como a claridade causada pelo repentino brilho. Será que na avenida Paulista, com as luzes da cidade, perceberia tal fenômeno se lá ocorresse.
      Em seu segundo dia na região, presenciou algo digno de ser contado por todo a vida. O cara é vidrado nessas ideias de objetos voadores não-identificados, cometas, mapa astral e, no começo de sua estadia aconteceu aquilo. Privilégio que a natureza lhe concedeu.
      Em uma das casas da redondeza, um sanfoneiro toca, violeiros no terreiro. Da janela, X fica a mirar as estrelas, ao longe um lar iluminado pela luz de um lampião. O sanfoneiro toca. Apesar da relativa distância, dava para ouvir o que vinha de outras moradias. Som de panelas, machado cortando lenha, conversa na varanda. Viva a noite do sertão! Durante as festas juninas, todos juntavam-se ao redor de fogueiras, fumavam, assavam batatas, reuniam-se com o sanfoneiro que também iluminava e enfeitava seu terreiro. Triângulo, zabumba e pandeiro para o arrasta-pé. 
            A  obscuridade é como a ignorância, a mente é uma caverna em parte iluminada e a escuridão é a ignorância. Albert X relembra Platão. Agora está em tal silêncio que dar para ouvir o som da gota pingando da torneira do filtro, um grilo chega estatalar de tanto cantar, sente-se em plena harmonia com o universo. O cometa passou rasgando o céu em sua mente, deixando clarões onde era escuro, o grande brilho e o homem que aproveita o momento de lucidez.




  
 

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A Vitória da Conquista

Chegaram os colonizadores
afugentando os filhos da terra,
penetraram pelo sertão,
vieram para fazer guerra.

Na trilha das preciosas pedras,
a mando do rei de Portugal,
quando haviam conquistado
todas as terras do litoral.

Restava ainda o gentio
que deveria ser afugentado
de todo sertão da ressaca.
do rio das Contas ao rio Pardo.

Assim determinou aos desbravadores
o sexto rei que se chamava João:
que fossem suas todas as terras
conquistadas a soldo de braço e facão.

João Gonçalves da Costa chega
e funda a igreja de Nossa Senhora,
surge, então,  a vila ao seu redor.
Nossa Senhora das Vitórias!

Em pleno século dezoito
essa história aconteceu,
a partir do Planalto da Conquista
a matança de onças e índios ocorreu.

Mais terras conquistaram,
fundaram novas vilas
que entre seus familiares
iam sendo distribuídas.

Conta-se que o conquistador
nessa sua empreitada,
matou mais de cem onças,
enquanto a mata era desmatada.

Certa vez foram convidados
vários aborígenes da região,
pensando os inocentes seria
para uma confraternização,

após serem embebedados,
sabe o que o colonizador fez?
Roubou-lhes as armas, mandou
matar todos de uma vez.

Em todo o sertão da ressaca
existiam mais dois mil,
Mongoiós, Aimorés, Botocudos,
gente que das praias fugiu,

tentando escapar da violência sofrida
por seus descendentes do litoral,
desde o século dezesseis, 
desde os tempos de Cabral.

Em sua própria terra
sentiram-se acuados,
cercados pelos inimigos 
por todos os lados.

Hoje estou a caminhar
pela antiga praça da Bandeira,
penso no antigo bandeirante
que usou de cruel maneira.

Em honra aos inocentes mortos,
descendentes da nação Guarani,
legítimos filhos dessa terra,
moradores da serra do Periperi,

escrevo esses versos, falando
sobre esse caso que sucedeu,
dizendo sinceramente a quem ler,
como foi que a conquista venceu.



 

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A Semeadura

Essas poesias fazem parte da série A Semeadura:

A Semeadura

A vida da gente
é uma semeadura,
o campo semeado
é pura fartura,
cada qual almejado 
em sua cultura.

Plantar, colher, acordar
quando o galo canta,
faz parte do cotidiano
da pessoa que planta,
a vida sempre evolui
e a horta se adianta.

No cérebro do arquiteto
foi jogada uma semente,
encontrou terra fértil
e uma voz dizendo: tente!
... uma planta nasceu
brotada na mente.

Os louros da vitória:
ver a construção erguida,
a plantação florou, o homem colheu,
na feira, ainda teve saída.
Melhor que isso é ter
força e fé na vida. 


O Livro

Na mente poética 
fervilha a palavra,
mãos operárias
fazem o livro

que chega ao leitor,
quando deixa de ser 
tão-somente matéria
ao transformar-se 
em alimento da alma.

Se o poeta semeia livros,
o gráfico prepara a terra
para a semente da mente
do poeta, enquanto o leitor
colhe os frutos da leitura.



Seis da Tarde

São seis horas da tarde!
Vou andando por aí;
na cabeça, lembranças
do que nunca esqueci.

Sonhos engavetados,
guardados no porão
dessa cabeça louca,
tão cheia de solidão.

Sigo pensando na vida,
descobrindo a razão;
a memória se aquece,
jardim que floresce,
luzes na escuridão.



Se Eu Fizer Uma Prece

O que acontece
Se eu fizer
Uma prece?

Até parece que eu
Só posso ser visto
Como um ateu.

Por não ir à igreja,
Dizem que não tenho
Um Deus que me proteja,

Por não ter partido,
Dizem que sou
Descomprometido,

Por fazer pouco,
Chegam a dizer
Que sou louco.

Quando faço bastante,
Ouço falarem:
Ele é tão distante!

Esperar ou ir à luta?
Melhor mesmo
Continuar a labuta.



A Planta

Molha a planta
Para o fruto crescer!
Molha a horta,
Molha a roça!
Se ninguém molhar, 
Rezarei para chover.



Bom

Bom é estar
Em harmonia,
Sentir, respirar
Toda energia.

Manhã bem cedo
Ir para o roçado;
Em noite de luar,
Xote e xaxado.

Sapo na lagoa
A coachar, a coachar...
Todos numa boa:
Quá, quará, quá, quá.



Um Sem Terra

Como um sem terra
que quer a terra 
para nela trabalhar,
um pobre poeta procura
mentes e corações
que o queiram escutar;

como a poesia sincera
que frutifica cabeças
e atinge o coração,
a semente jogada
transforma-se em alimento
para a população.


O Oleiro Cego

"O primeiro oleiro
foi Deus, quando
do barro fez o homem."
Palavras ditas
por um oleiro cego.

Do barro 
o oleiro cego
fez sua obra
para que outros a vejam.


A Sede

Desde que fora capturada
no meio da caatinga
na terra do sol
não bebia
desde quando
a trouxeram prisioneira

mãos amarradas
pela vegetação agreste
passando por riachos
por cacimbas

Clara cora acuada
lembra de uma canção
do tempo de criança
que cantava quando ia
à fonte com a criançada
buscar o de beber

agora a sede
uma moringa cheia
sobre a mesa
depois de tanto andar
debaixo de um sol
abrasador

trovejava
interrogavam
interrogavam
nem mais coordenava
seus pensamentos

lembrava do que pensava ter esquecido
ou do que se esqueceu
recordações das brincadeiras dos meninos
a jogar água uns aos outros,
na cela, queria apenas um gole,
ao seu lado bebiam, molhavam-se

"há três dias
sempre a mesma
lenga-lenga"

sempre o mesmo recipiente
a água fresca negada
as perguntas
e Clara dizia:
"cumé qui num posso
falá de trabai?"

Do lado de fora sons
de trombetas e tambores

"O que você quer,
um pracatá ou um prequeté?"

"Ocê pode me dar um de beber?"

"Quer tchu ou quer tcha?"

"Tcha tcha tcha." 

"Em quem vai votar?"

"Em Limpo?"

"Por que?"

"Pro mode qui parece ser pessoa digna."

Deixa-se cair
a moringa
o líquido escorre
percorre riacho
sobre o móvel
e pequenas cachoeiras
e banhos de rio
não voltara a casa de seus pais
era como se lá estivesse

lá fora na rua
bombas, fogos de artificio
nem era noite de São João
não havia certeza
há quanto tempo
morria de sede
num repente aparecem
os camaradas
sentiu molharem seu rosto
levantaram-na

na rua
comemoração
festa
gotas de chuva 



terça-feira, 4 de outubro de 2011

Histórias De Um Certo Povoado

As histórias aqui postadas podem ser de ficção ou não-ficção.  


                                                 
                                O Surgimento

        Eram duas casas. Uma defronte a outra ao final da ladeira. Na casa amarela havia uma vendinha, duas portas ao lado onde viajantes paravam para comprar ou trazer mantimentos, beber cachaça, pitar e conversar fiado. A outra casa era bem maior, com várias portas e janelas, avarandado e pilastras, ali o pai armava a rede, e em noites de lua cheia ficava a contar histórias que faziam a meninada parar com as brincadeiras e prestar atenção ao caso.
        A segunda grande guerra havia acabado há uns cinco anos, mas naquelas paragens ninguém comentava sobre tal acontecimento, tão distante daquela gente a passar por ali montada em burro, transportando todo tipo de mercadoria necessária para a subsistência de todos. Cereais, açúcar, pano, talheres, farinha, rapadura, brilhantina e tudo mais que fosse preciso. O movimento aumentava na venda onde tropeiros comiam e descansavam. De repente, um menino da casa grande voltava chorando do mangueiro, após cortar-se abaixo do joelho no arame farpado, quando tentava subir na cerca. A mãe chegava à varanda, assustada, raiava com o moleque que corria para a cozinha, onde a preta velha vinha e lhe colocava o curativo.
          Dentro da venda, o violeiro cego tocava e cantava, sentado junto ao balcão, quando uma réstia de sol trespassada do telhado, atinge em cheio o seu olho esquerdo, causando a leve impressão de que um foco de luz jorrasse dos seus olhos. Quem percebia isso era o viajante de mala em punho, estava indo para o sul, que entrou e disse "boa tarde". O estranho cumprimentou a todos no recinto e pediu ao bodegueiro que lhe servisse uma bebida, elogiou as músicas executadas pelo cantador, pagou cachaça aos fregueses presentes, cantou e fez amizade, ficou mais algum tempo, obteve informações sobre o caminho a seguir, depois se foi antes que a tarde findasse. O vulto daquele homem desaparecia enquanto descia a ladeira a uns cem metros da venda. A senhora na cadeira de balanço, a mocinha na janela, os meninos continuavam a brincar, os adultos sentados na calçada ou selando cavalos, apertavam os arreios. 
        Em certo dia, alguém teve a ideia de criar um estábulo para ponto de apoio. O filho mais velho do bodegueiro construiu um barracão, e ali os tropeiros deixavam os animais, enquanto se divertiam contando histórias. Falavam sobre a estrada de rodagem sendo construída, cortando a velha estrada um pouco mais à frente, próximo daquela propriedade. O progresso começava a chegar, trazia automóveis que levantavam poeira. Um cisco cai no olho do boiadeiro ou foi a fumaça do cigarro que fez uma lágrima rolar, ele limpa os olhos com o lenço que tira do bolso do colete, em seguida fala.
    " Os automóveis estão chegando. Logo estarão nos substituindo no transporte do gado. Em nosso lugar o motorista sozinho levará toda a boiada, que só tem de descer e subir no carro."
           O bodegueiro entra na conversa.
           " Mas moço, isso ainda vai demorar prá acontecer."
           " Sei não, Seo Neli, sei não..."                                      
              O boiadeiro ri, pede outra cachaça e passa a bater com as palmas das mãos, acompanhando os versos jogados pelo ceguinho ao som da viola. Sem alterar o ritmo todos começam a cantar.                                    
          Enquanto isso, a senhora na cadeira de balanço matutava. A preta velha é ótima cozinheira, de tradição, sua mãe havia sido escrava da família nos tempos do imperador, quando conseguiu a carta de alforria, preferiu ficar e continuar trabalhando na casa, pois não teria lugar para ir. Mais tarde engravidou-se de um ex-escravo que ganhou o mundão de Deus, foi embora e nunca mais voltou. A criança, que hoje é a preta velha, nasceu e cresceu recebendo o carinho dos pais da senhora, aprendeu com a mãe os segredos da culinária. A mãe faleceu e Pretinha, assim era chamada, passou a ser a titular na cozinha. Quando a senhora se casou, resolveu trazê-la consigo. Agora, a senhora pensa em montar um restaurante, o lugarejo cresce a cada dia. Construíram uma pousada para os viajantes mais distante do estábulo do mesmo lado da casa grande.
         Assim foi crescendo. De repente brotou, em formato de pracinha, casas frente a frente em um quadrado, no planalto acima da ladeira. Em determinado ponto onde a estrada entortava pararam de construir mais residências, mais tarde é que abriram ruas até a margem da estrada de asfalto.
        Após a construção da pousada, novas ideias surgiram, novos viajantes, os primeiros caminhões a trafegar pelo novo trecho da BR, ligando aquele povo à região Sudeste. Os paus de arara apareciam cada vez mais, vindos de regiões que sofriam a devastação da seca. Era o fenômeno do êxodo rural, camponeses nordestinos em busca de trabalho na indústria paulista. Em um desses paus de arara, vinha um casal de retirantes a procura do que fazer para ganhar dinheiro e seguir viagem. O homem tinha o ofício de barbeiro, pegou um dia de feira, conseguiu trabalho. Foi aprovado. Arrumaram-lhe uma tenda e lugar para ficar. Ali passara a morar.
        A mocinha na janela fora estudar na cidade para voltar professora, o menino que se cortou no arame olhava os automóveis passarem e a senhora agora pensava em criar uma quermesse  e construir uma igreja. O posto de gasolina, que fizeram próximo à pista fez com que o povoado crescesse de encontro à margem da estrada, ruas foram  projetadas dando o aspecto de vila. O filho mais velho do bodegueiro dono do estábulo também criou a feira e, em seguida, o local passou a ser ponto de encontro de agricultores para venda ou troca de seus produtos. Pessoas de vários lugares distantes e povoados próximos fizeram o arraial. De duas casas passara a oito ruas. A mocinha voltava da cidade formada em magistério e passou a lecionar, o menino cuidava das ovelhas e ouvia o barulho dos carros ao longe, sonhava. Continuavam suas vidas. Eis aqui uma história que surge, de como surgiu ou de como ficou só naquilo, um simples povoado à beira da estrada. A igreja, o campo de bola, a feira, a quermesse, o cinema e as primeiras casas no marco zero do arraial.


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        Em dia de feira, o ceguinho proseia, faz versos, perpetuando histórias para os ouvidos atentos dos viajantes. Romeiros em direção à Bom Jesus da Lapa acabam de chegar em um caminhão com cobertura de lona e tábuas de um lado a outro da carroceria, adaptadas como bancos, senhores de chapéus enfeitados  e as senhoras de lenço. O som da viola embala as noites, o soar da canção embola-se agora em meio às ladainhas, excelências nas bocas dos pagadores de promessas, velas acesas, a cera derretendo, escorrendo por entre os dedos. Os habitantes reverenciam os peregrinos vindos das brenhas do sertão. O rapaz que um dia foi o menino que cuidava de ovelhas, magnetizado, subiu no caminhão e se mandou sem despedidas, não mais voltou. Dizem que pegou o gaiola no São Francisco e rumou para o litoral .
       Assim que o rapaz partiu, chegou um grupo de uns dez motoqueiros, todos de Harley-Davidson, para abastecerem na única bomba de gasolina que há no posto, depois deram voltas pelo povoado, brincaram com as máquinas para o deleite de todos ali presentes, depois se foram. Quando saiam, um deles que havia sentado no banquinho da praça para ler, acabou deixando um livro, não se sabe se esqueceu ou se foi de propósito. Alguns moradores tentaram avisar, mas os motoqueiros não ouviram. O proprietário da venda ainda gritou: "o livro". Os homens das motocicletas acenaram alegres, agradecidos pela recepção, deixaram o livro.
        A história de Kafka caiu nas mãos do escrivão, porque ali ninguém tinha ouvido  falar sobre aquele autor, nem sabiam do que se tratava, quanto mais entender daqueles assuntos.  Depois de passar de mão em mão, o livro foi entregue aquele funcionário do cartório, que olhou a capa, leu a orelha e também nada entendeu. Guardou o escrito junto aos arquivos de registros sem  interesse de ler algum dia. Por lá o livro ficou por muito tempo até o dia em que o poeta apareceu a buscar histórias e quando folheava algumas páginas, deparou-se com "A Metamorfose".
     O poeta foi até a mesa onde se encontrava  a antiga funcionária de óculos na ponta do nariz e soube da história, de como aquele livro parou naquele lugar. A senhora pensou várias vezes em se livrar de tal objeto, pois no cartório o que interessava eram os livros de registros de nascimento, escrituras e alguma noção da constituição, além da boa escrita, o que mantinha seu emprego. A senhora notou o interesse do jovem e deu-lhe a transformação de presente.

                    
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          "O caipora fez o menino se perder, foi preciso que trouxessem fumo para presentear e quebrar o encanto."

      Adentraram pelo povoado, entre olhares curiosos das janelas e das mulheres a catarem piolhos nas calçadas ou fazendo cafuné. Eram três. Souberam mais tarde que fugiam da repressão militar. O ano é 1964. Estranhos personagens para as pessoas da vila, que logo angariaram a simpatia dos mais novos que se interessavam por assuntos políticos. Os mais idosos os veem de forma desconfiada.
         "Parece que são comunistas!" Diziam entre si. 
      Surgiram boatos espalhados entre as crianças, diziam que eram tiradores de sangue, papas-figo, criações para afastá-las, desde pequenas, do que chamavam ideias subversivas . Quem as inventava ninguém sabia, mas logo eram disseminadas. Depois apareceram outros tipos de perseguição, a repressão aumentou e os visitantes foram denunciados ao governo, por conta  da influência que as ideias socialistas e libertárias causavam no modo de vida das pessoas. Os pequenos agricultores se organizavam em cooperativas, falavam de reforma agrária para se protegerem do latifúndio. Impedidos pela ação do exército nacional que veio à procura dos líderes do movimento, chamados  de terroristas pelo regime. Para os militares, os comunistas tentavam desestabilizar a "harmonia  implantada" pelo governo recém fundado. O verdadeiro terror começava.
    A essa altura, os três visitantes estavam a uns vinte quilômetros, fora do arraial. A perseguição apenas se iniciara, muita coisa aconteceria mais tarde. Junto daqueles rapazes que um dia chegaram propagando suas ideias de justiça, foi o poeta libertário à procura de outras visões para fora do povoado.

          "Quem dessa água bebe jamais esquece."

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     Enquanto a caçada aos comunistas se iniciava, dois moradores, proprietários de dois quiosques ao lado da parada de ônibus, conversavam. Ouvia-se o som do rádio de pilha que vinha de dentro de uma das barracas. Era a música de um jovem cantor começando a fazer sucesso: O Calhambeque, de Roberto Carlos. 
        " Ô cumpade, o sinhô num quer comprar esse rádio? Vendo barato."
            " Agora num dá, cumpade, posso não."
            " Vendo por três."
      Um viajante que descia do ônibus que acabava de  estacionar no pátio ouviu a conversa entre os dois e falou.
           " Eu pago cinco pelo rádio."
           O vendedor disse taxativo:
           " O aparelho não está à venda, moço."
              Como o viajante insistia, o vendeiro questionava.
           " Ué moço! Pelo que tô olhando, o senhor tá vindo de São Paulo. Por que que não trouxe um aparelho de lá?"
            "Eu quero levar um presente para meu irmão que mora no Pernambuco , pensei em comprar uma lembrança durante a viagem, então ouvir a conversa de vocês e resolvi levar o rádio."      
            " Sinto muito, mas não posso vender."
            " Eu pago seis."
            " Vendo não, posso não."
          O viajante, sem entender nada, caminhou em direção ao carro que começava a sair. O motorista buzinava para chamar os  mais atrasados. Foi-se embora sem o rádio de pilha.
             O outro quiosqueiro então falou.
        " Num tô entendeno, cumpade. O sinhô num queria vender o aparelho? Por que num aceitou a oferta do paulista?"
          " Ora essa, cumpade! Esse é o único rádio aqui por perto, se eu vendesse, o aparelho ia para bem longe e nóis ia ficar sem o nosso consolo de todo dia."
          "Deveras! Tô entendeno."
          " Ia ficar sem ouvir as cantigas."
          " Eu num tinha atinado prá isso, cumpade!"
          " E o futebol? Sem ouvir os gols do rei Pelé."
          " Nós ia sentir muita falta."
          " Pro sinhô, eu vendo. Quer comprar não?"
          " Num dá não, cumpade."
          " Três."
          " Dois e negócio feito."
      Nesse instante, chega Zé Prequeté. Pede uma cachaça e  passa a contar a nova história.
        O artilheiro, jogador do time do povoado, envolveu-se numa briga, por isso estava preso. Autoridades foram pedir ao delegado que o soltassem para que pudesse jogar no domingo. O delegado, comovido, também preocupado com a derrota do time, havia apostado grana alta, resolveu soltá-lo.
       Porém, ao terminar o jogo, voltaria para a cela. Do xilindró para o campo de bola escoltado por dois soldados.
         Para o delírio da torcida, o time do povoado venceu por 1 a 0. Gol de quem? Dele.
    Após a partida, o delegado acabou permitindo que o artilheiro comemorasse junto aos seus companheiros, mas  depois teve que voltar para o xadrez nos braços da galera, dos torcedores que o levaram até a entrada da cela. 

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         " Nem tudo que se lança ao fogo é para se queimar."

       Um sábio entrou em um bar, em trajes simples, não eram novas suas vestes, mas estavam limpas.
        Ao pé do balcão, alguém lhe falou que a vida é um eterno sofrer. O sábio disse que é necessário alegria de modo que se possa bem viver.
        O mais novo não sabia que estava diante de um conhecedor de histórias e disse em tom didático.
        " A gente precisa ter sonhos, viver a sonhar."
        Naquele momento de emoção do mais novo, o sábio falou que sonhos todos tem, sonhos são reflexos de lembranças que surgem em nossas mentes quando dormimos, quando acordados são pensamentos. Cada qual pode saber o tamanho do seu sonho. Disse isso ao perceber que o mais novo misturava sonhos com desejos.
        Aquele que mais parecia compreender o que o sábio havia dito transbordou-se em emoção e logo revelou o que foi sua vida desde a infância, quase chorou, disse como se estivesse diante de um confessor ou de um psicólogo ou de alguém que ali estivesse  para não julgá-lo por qualquer desvio, mas falava com medo de ouvir.
     Então o sábio percebeu que aquele que mais pareceu compreender não compreendia o quanto parecia, porém viu ali o gosto pelo diálogo. Mas o peregrino estava de passagem, era apenas um viajante que se despedia. Todos queriam lhe fazer uma presença, não houve mais tempo, o sábio se foi.
       O homem ao pé do balcão teve receio de que a tristeza chegasse , o mais novo pensou em perguntar algo, mas não o fez e aquele que mais parecia compreender pensou em acompanhá-lo, acabou deixando para outro dia se ainda o encontrasse.
        Foi quando o sábio atravessava a porta e partia em direção à estrada. 
        No bar, por alguns segundos, as vozes silenciaram, para que depois voltassem, barulhentas, alegres, ansiosas, contando aos que acabavam de chegar sobre o maluco andarilho que por ali havia passado. 
                            
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         No sopé do morro, a cancela solitária no pasto, sem cercas que a ligassem, estava como que plantada, sem nenhuma função. Não havia nem mais a estrada em que passava o menino que buscava leite para vender no povoado. O pasto ficou sem a divisão, a cerca foi arrancada, mas deixaram aquela porteira que tanto abriram e fecharam.
         Por ali passaram tropeiros que traziam produtos a serem comercializados. A feira cresceu, o povoado transformou-se em arraial, passou a distrito, já pensam em emancipação. Deixaram de lado a porteira, retiraram as cercas, o mato foi crescendo e tomou conta, a cancela permaneceu. Visão que faz lembrar um quadro surreal.
        Não abriram mais a porteira, não havia mais a necessidade de usá-la, os viajantes que subiam o morro, desciam pelo outro lado e seguiam o caminho do sertão. Muito antes do início do povoado passavam por aquelas paragens, entre a mata atlântica e a caatinga, pessoas que se aventuravam a ir além das margens dos rios, pesquisadores, escravos fugitivos à procura de quilombos. Nesse tempo ainda não existia a cancela, que é do tempo das duas primeiras casas.
         Da baixada, vê-se bem adiante, a BR na curva. Os carros não demoram a passar como antes, já não são poucos. De um lugar plano no alto da serra, alguém olha o aglomerado de casas. Quem tudo percebia era um maluco de estrada que muitas histórias escreveu, outras se perderam no caminho.
         Do alto olhava a porteira abandonada. Parecia um portal entre mundos paralelos, sempre fechado, nunca se via ninguém abrir, até aparecer um velho de barbas longas que a abre,  por ela passa e segue em direção ao topo. Lá de cima, nota-se um certo crescimento, dá para imaginar o tempo que passou.
         O moço desceu. Passou novamente pela cancela, seguiu em direção às primeiras ruas, quando percebeu que o povoado agora era a cidade. 
               
                   
                       
João Brabo No Cinema


                                                  Ademário Ferreira 
 

          Esse caso aconteceu no final dos anos sessenta. Uma das novidades que surge na vila é o cine-teatro. Contagiou a todos. Artistas famosos do teatro de revista vinham se apresentar naquele lugarejo e o cinema também era grande atração. Filmes como Tarzan, Hércules, Django, E O Vento Levou, entre outros, eram exibidos.
          Estava em cartaz, O Dólar Furado, estrelado por Giugliano Gemma. Um bang-bang. João Brabo ainda não conhecia o cinema. Pelo nome do sujeito dá para perceber o seu grau de valentia. Gostava de andar sempre com uma arma no coldre, era do tipo que não levava desaforo para casa, mas no fundo, um cabra bom, respeitado por todos por não negar fogo no momento preciso. Esse valentão ouvia as histórias das películas, contadas com entusiasmo pelos seus colegas, mas não fazia ideia do que era.
      Depois de tanto ouvir sobre o tal cine, João resolveu ir à noite, pela primeira vez assistir O Dólar Furado. A princípio, ele pensou que os atores estariam ali presentes por trás de um pano iluminado.
      O filme passou a ficar bastante real para João Brabo, que coloca a mão no revólver no instante em que os bandidos em grupo atacam o mocinho.  Então, ele começa a falar:
          - Êpa! Aí é covardia. Um bando todo armado contra uma pessoa só. 
        Mas logo se acalma ao ver o mocinho sacar os dois revólveres da cintura e derrubar os inimigos.
          - Esse é dos meus! Falou João com certa euforia e aplaudiu.
          Um rapaz sentado ao lado falou:
          - Fica quieto, João! Isso é só filme, é tudo mentira.
        João sabia que era filme, só não estava convencido que era mentira. Tinha lá suas dúvidas. "Que o sangue parece de verdade, parece". Assim pensou.
      O mocinho recebe um tiro no peito, é salvo pela moeda de dólar no bolso. O bandido aponta a arma para a plateia. Naquele momento, João Brabo levanta-se da cadeira, saca a arma e começa a atirar contra a tela, escondendo-se atrás das poltronas, rolando pelo carpete nos corredores, atirava e gritava.
   - Não se preocupe minha gente! Todo mundo abaixado! Em nossa terra, forasteiro nenhum bota banca.
      Foi aquele panavoeiro. Continuou a atirar até acabar a munição. Então escutou o rapaz ao lado novamente dizer:
       - Tu tá doido home, eu num tô falano que isso não é verdade?
      - Num é o que, rapaz! Esses covardes atacam um só. 
        Acenderam as luzes e João continuou a gritar.
      - Ué, foram embora. Voltem seus covardes! Aqui tem home, seus merda.
     Veio o lanterninha, depois o gerente,  juntaram-se todos ao redor daquele sujeito que provocou tanta confusão, tentando fazer com que ele compreendesse que aquilo era só cinema, que aqueles homens não estavam ali de verdade, era fotografia em movimento. Levaram-no até a tela, para lhe mostrar que por trás do pano não havia mais nada além da parede.
         Até que o cara se convenceu e saiu sob os apupos da plateia. 



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Lalai

                                               Ademário Ferreira

          Toda vez que ouço a música Fio de Cabelo, cantada por Chitãozinho e Chororó, lembro-me de Lalai, que adorava essa canção. Quem foi Lalai? Chamava-se Eulália, mas a maioria das pessoas no povoado a conheciam pelo apelido. Uma cabocla, de aspecto indígena, cabelos pretos e longos, sempre de lenço, baixa, devota de Santa Luzia, tinha um oratório em seu quarto onde nunca deixava de fazer suas orações antes de dormir.
          Na época em que ela chegou em Periperi, veio de uma região entre Jequié e Itiruçu, com seu marido, um senhor bem mais velho que ela. Fazia alguns serviços domésticos na casa dos meus pais, nesse tempo eu nem era nascido. Um dia brigou com o marido que foi embora carregando todos os documentos que ela tinha, nunca mais se teve notícia dele. Não quis mais saber de homem. 
       Acabou ficando em nossa casa, minha mãe arrumou um quartinho para que ali ela ficasse e ali ficou para nunca mais sair, com o tempo transformou-se numa pessoa da família, ajudou a criar todos os sete irmãos até a chegada dos primeiros netos. Buscava água, cozinhava, fazia um cuscuz gostosíssimo que ficou famoso, gostava de juntar o dinheirinho dela, fazia cocadas que mais tarde quando eu já tinha nascido ia vender na feira. Uma das coisas que eu gostava era de rapar o tabuleiro usado para cortar as cocadas.
           Quando a televisão chegou em nosso lar, cativou logo aquela mulher que não sabia ler as letras, nem assinar o nome, mas assistia as novelas e filmes que entendia a seu modo e levava a sério as histórias, que ela vivia como se as personagens fossem bem próximas. Chingava os vilões, chorava com as tristezas, virava o rosto quando havia cena de beijo na boca, gostava das trilhas sonoras, a sua música de novela preferida e inesquecível foi Pavão Misterioso, composição de Ednardo para a novela Saramandaia. Um de meus irmãos, certa vez lhe deu de presente o Lp da novela, isso a deixou radiante, guardava, zelava daquele disco como uma joia rara, sempre pedia para que nós o colocássemos para ouvir na vitrola. Para assistir televisão, sentava bem juntinho ao aparelho de tv, ali ficava sua cadeira cativa, ninguém ousava tomar o seu lugar. Tinha todas as personagens em sua mente, quando a novela  acabava e os atores surgiam em outra, dava uma dificuldade explicar que era outra história e que os atores representavam outras personagens, mas logo entrava novamente na história e começava tudo outra vez.
          Numa ocasião, eu e minha irmã estávamos fazendo uma lição de casa sobre gramática, o assunto era Sinônimo e Antônimo. Como falávamos em voz alta e repetíamos sempre as palavras sinônimo e antônimo, Lalai pensava que falávamos de dois personagens da dramaturgia televisiva: Simone, vivida por Regina Duarte, na novela Selva de Pedra e Antonio, vivido por Tarcísio Meira, em Escalada. Sutilmente, ela entrou no assunto e perguntou: " Na escola vocês estudam também sobre o povo da novela?"
             Os palavreados usados por ela nos divertia, eram vários, tais como: quando por algum mau feito: " antu de merda", quando ficava com raiva com as nossas pirraças: "onça trigue", quando pedia para nós irmos em algum lugar e não íamos... ficávamos parados: "tora de pau”, quando fazíamos de cínico: “lutrido” ou quando comíamos demais e queríamos mais: “barriga de samborá”.
             Um longo tempo passou, Lalai se encontrava doente, vivia mais na cama,  percebíamos que era chegada sua hora de ir para o andar de cima.
           Pouco antes de sua ida, fui sozinho passar alguns dias numa roça de um parente. No primeiro dia andei a cavalo, fiquei pensando, conversando com os moradores locais. Só passei uma noite, no outro dia bem cedo, meu pai chegara de carro e, pelo seu semblante, percebi que veio para me buscar. Lalai havia falecido. Voltei com meu pai, calado durante toda a viagem para o último adeus.