quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O Velho Filósofo

                                  O Velho Filósofo

       Este conto, se é que podemos chamar de conto, se constitui apenas em um motivo para filosofar, mostrar poesias ou ideias. As próprias personagens principais, o velho filósofo e o jovem filósofo sugerem isso. Outras personagens aparecem com o decorrer dos fatos, como a cantora, entre aqueles que cantam e dialogam ao redor da fogueira. O único que é referido pelo nome, é o poeta Ramallo Ortiz.

         Entretanto, o que se notará nas páginas seguintes é, simplesmente, a grande aventura da existência, de um homem em busca do saber. Nessa história, as situações são criadas com a intenção de dar continuidade aos encontros  entre os dois filósofos, o velho e o novo.

           A cada tempo, o jovem aprende e o velho, já distanciado de certas inquietações, embora ciente de que também foi como aquele jovem, deixa-o à vontade para que descubra por si, certas verdades sobre a vida. Uma busca que parece se transformar numa eterna aventura para o homem.

                         

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          Mesmo sabendo que nunca seríamos nada daquilo que pensávamos , o velho filósofo comportava-se como se nada soubesse, sempre com um olhar de compreensão e inteligência. Mesmo sabendo que tudo é semelhante a um sonho que se acaba para esperar que adormeçamos outra vez, acreditávamos na vida surgindo a cada dia diante dos nossos olhos. Cidades invisíveis, imaginadas em vários formatos, com diferentes habitantes em suas distintas culturas, roupas, comidas e antigas tradições.

        "Os olhos dele parados em frente a mim, meus  olhos nos dele mergulhados vendo a vida a correr. Com o passar do tempo, tudo parece tão distante, e ainda parece que o tempo passou e ficaram os sonhos, imagens de um passado ou de algo que parece futuro. Passado e futuro a nossa frente. Um velho de feições rejuvenescidas,  de movimentos surpreendentes, astúcia de um garoto, um vidente a acompanhar-me durante toda a vida, através de uma bola de cristal."

        Quando se indispôs contra o mundo, devido à falta de oportunidades que parecia nos cercar, o velho com um sorriso eternamente estampado, disse uma frase marcante:

   "Mais vale a ignorância total que um conhecimento esvaziado do seu princípio fundamental."

      Então o jovem passou a se concentrar  na origem das coisas ou das supostas coisas, interessando-se pelas ciência,  pelo misticismo, pela fé. Percebeu que a origem das coisas estava muito mais além do que pensava. Olhou-se no espelho, viu alguém igual ao velho, ouvinte atencioso e argumentador implacável, sempre mostrando um ponto adiante. Pensou.

       "Se algum dia, encontrar o velho por aí, vai parecer-se com o jovem diante do espelho." 

 

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         Certo dia, depois de tanto ouvir o filósofo e estar agradecido por tudo feito, o rapaz chegou para mais perto dele a fim de dizer algo.

         "Quando partires, elevarei teu nome, farei de ti símbolo de novos adeptos para que tuas palavras sejam perpetuadas de geração em geração."

        "Por favor, meu jovem, cuidado para não me crucificar. Quanto às palavras, quando as usar não serão mais minhas, serão tuas."

        Ouvindo isso, pensou no quanto o velho ainda tinha para ensinar e percebeu a lógica contida em tais  palavras. Enquanto pensava em si, refletiu naquilo que o velho filósofo quis dizer: quando tu partires... e o velho poderia partir bem depois dele.

        Depois não veio mais nenhum pensamento. Seus olhos depararam novamente com os olhos do velho, manso, tinha uma espécie de sorriso contido e via o jovem como se adivinhasse seu pensamento. Calou-se diante de tal suavidade.

          Ambos permaneceram calados.

 

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         Um  fósforo foi aceso para queimar incenso que enquanto queimava, ficaram a debater sobre a harmonia universal. De como cada ser tem importância fundamental nos acontecimentos a todo instante. E o velho dizia.

         "Somos como ovelhas desgarradas, longe do seu pastor, separadas umas das outras sem noção de onde fica o ponto exato em que se deu a separação. Alguns  podem estar mais próximos, outros mais distantes sabem até aonde ir e outros, nem sabem onde estão."

      É como se estivéssemos construindo a grande muralha da China. Dizem que essa construção é tão grande em extensão que, para construí-la, colocaram  grupos de pessoas em cada ponto diferente, do começo ao fim da muralha. Trabalhadores de todas as partes do país construíam quinhentos metros em cada ponto escolhido. Quando terminava uma parte, iam recomeçar em outra e assim, continuar a obra sem a ideia do seu tamanho.

       Operários reversavam-se de local para local. Muitos passaram a maior parte de suas vidas trabalhando nessa construção, que durou mais de duzentos anos, até que finalmente, todos os pontos se encontraram para formar a grande muralha.

          "Por que essa construção não foi realizada de um ponto inicial até o final com os operários formando uma só equipe?"

       "A muralha da China é enorme. Se fosse feita do jeito que você fala, corria-se o risco de os operários se darem conta do tamanho da obra, podendo ocorrer um desânimo e assim parar pela metade. Da forma que foi construída, a muralha ia surgindo simultaneamente em cada província e o entusiasmo também tornava-se simultâneo. "  

    De tal modo, os chineses usaram a inteligência e fizeram o que parecia impossível.

       "Que belo exemplo para explicar a harmonia das coisas." Disse o novo ao velho.

    O velho sorriu como se aprovasse a sua compreensão, segurou depois um espelho com as duas mãos e disse:

       "É como se eu jogasse no chão esse espelho que se partisse em mil pedaços para juntá-los. Se você segurar apenas um fragmento do espelho a uma distância de dez centímetros de seu nariz, não vai dar para ver seu rosto por inteiro, a não ser que os pedaços sejam juntados como um quebra-cabeças."

         Nesse momento, a fumaça do incenso toma conta da pequena sala. O jovem se levanta do  tapete em que estava sentado e resolve colocar um disco de Vivaldi na vitrola. Enquanto ouviam o concerto para violino em fá maior, o aroma musk espalhava-se por toda a casa..

 

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       Resolveu andar, saiu de casa e foi para a floresta que havia perto da cidade. Atravessou serras, embrenhou-se no mato, aprofundou-se indo ao fundo da alma, em busca de algo que o fizesse sentir-se em contacto com o mundo e chegou ao ponto  de ter a sensação de flutuar sozinho sobre a terra. Em sonhos distantes vagou e tudo ficou vago, perdeu a esperança que tinha, perdeu a fé, mas nem  precisava ter fé. Era simplesmente nada.

          Depois de longa caminhada, parou perto de um riacho na beira do caminho. Pensou na origem do homem, lembrou de  livros que leu, um conjunto de coisas significantes e tradutoras de um mundo projetado em sua mente. Veio  à memória, uma história que o velho filósofo lhe contara. Uma fábula extraída de um livro chamado Servidão Humana:

            "Um rei oriental desejando conhecer a história do homem, recebeu de um sábio quinhentos volumes; atarefado com os assuntos do governo, solicitou-lhes que os condenasse. Depois de vinte  anos o sábio voltou e agora a sua história não era mais que cinquenta volumes, mas o rei, demasiado velho, para ler tantas páginas, pediu que abreviasse mais uma vez a história. Tornaram a passar mais vinte anos e o sábio, velho e encanecido, trouxe um livro no qual continha a ciência que o rei procurava. Mas o rei estava morrendo e não lhe sobraria tempo para ler nem aquele volume. O sábio, então, narrou-lhe uma história do homem numa simples reta: nasceu, sofreu e  morreu."

 

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          A noite está chegando, o jovem também sabe que um novo dia vem  vindo e espera comovido, por esse dia que trará alegria para os tristes e sofredores. Quando chegará tal dia?

           Começou então a pensar que Deus existe. Não pensou em um Deus que ainda virá, nem que está distante no  céu ou de costas para a terra, mas sim, em um Deus do aqui e agora, dentro e fora dele, e tudo parte Dele, Ele em tudo e que tudo retorna a ele. 

         "Se Deus é o todo, sou parte do Todo." Assim pensou.

            Supomos que um pão representa o todo: uma migalha do pão é também o pão, mesmo que a migalha esteja no  chão. Embora não quisesse fazer parte de nenhuma religião, penetrou nesse campo místico, em busca de respostas para tantas perguntas que absorviam seu cérebro.

 

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       Depois daquela fase da metafísica, debandou para outros lados. Ouvia uma música do compositor Renato Russo que definia essa etapa de sua vida: "ainda estou confuso, só que agora é diferente, tô tão tranquilo e tão contente."

     Em sua frente, a realidade aparece mais clara, a miséria nas ruas, a fome, o homem que explora o homem, coisas que há tempos lhe traziam angústia e revolta. Só que dessa vez olhava com uma nova esperança.

         Novamente, mesmo sabendo o quanto é difícil ver todos em paz, alimenta que a solução está em cada consciência, mas é tão difícil  cada um se enxergar. Mesmo assim, segue adiante acreditando na paz, na harmonia entre livres em uma outra era.

     Agora pensa em socialismo, comunismo, anarquismo ou seja lá o que for solidariedade, criou dentro de si um país e se dentro dele ainda  havia resquícios de inveja e ódio entre os pares, decidiu aplacá-los e exterminá-los com toda sua energia.

 

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          Algumas pessoas unidas em torno de uma ideia que caiu feito semente no meio daquele povo. Um espaço para agrupar aqueles que estivessem dispostos a viver em comunidade. Para que os camponeses tivessem acesso à terra e os moradores abandonados da cidade onde ficar. O velho filósofo disse certa vez que muitos problemas relacionados à mente humana moderna decorrem de questões econômicas ou financeiras. São pessoas com dor de cabeça por estar sem dinheiro, sem casa, sem emprego, sem terra.

       Assim caminham os homens. Que bom se fôssemos à cidade por querermos conhecê-la ou por qualquer outra opção que não fosse por ser refugiado ou retirante.

        Existem pessoas que veem outras coisas as quais outras não estão vendo; que querem ajudar outros a enxergar, pessoas de várias partes do planeta. Pessoas, pessoas e pessoas.

       "Essa comunidade é para que todos tenham boas relações entre si, haverá uma equipe escolhida para mediar os acordos.

    Que venham aqueles que queiram uma casinha  no campo, cachoeiras, horta no quintal, Internet, rios de leite e montanhas de cuscuz." 

 

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     Em um grande encontro de pensadores, grandes cabeças se encontram com a finalidade de discutir sobre a condição humana no planeta Terra. Naturalmente,  o velho filósofo estará presente.

     Essa  reunião aconteceu numa fazenda. Várias barracas de acampamento e uma boa infraestrutura para atender aos visitantes. Ali uma ideia começaria a ser praticada. Em uma pracinha improvisada, uma tribuna, um palco, uma mulher se destacava tocando violão e a voz soprano indo direto ao coração. O seu olhar mirava alternadamente, os olhos atentos e tranquilos daqueles que a olhavam e a ouviam.

          Perto do curral, um grupo conversava de forma alegre, um som doce de flauta percorria o ar, o cheiro dos bichos misturava-se ao aroma da fumaça dos charutos cubanos, fumo da Noruega, entre outras "coisitas" mais. Dali a uns trinta quilômetros há uma estação ferroviária, onde todos os dias estaciona um trem, para entrada e saída de passageiros. Nesse dia, a velha estação, situada sozinha no meio do cerrado, teve o seu dia mais movimentado.

          O povoado que fica a dois quilômetros da velha estação, foi apanhado de surpresa ao chegarem os primeiros participantes do evento, mas os habitantes logo se adaptaram ao comportamento daquelas pessoas que vieram de longe para se unirem numa fazenda daquela região.

 

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           Ao pé da fogueira estavam sentados vinte pessoas cantando e conversando. A mulher do violão, acompanhada por outros músicos, cantava uma velha canção de Bob Dylan: " quantos caminhos um homem deve andar para que seja aceito como um homem,  quantos mares uma gaivota irá sugar para poder descansar na areia". O refrão diz que a resposta está no vento, e o vento soprava os cabelos, os ouvidos, soprava a brasa da fogueira, aumentava as  labaredas que clareava a noite escura e aquecia corpos e mentes e corações. Outros dançavam, batiam palmas ou ouviam.

       De repente, o poeta Ramallo Ortiz, um latino americano, só não se sabe de qual país, declama um poema com fundo musical: 

     O Caminho da Liberdade 

Pedregoso, cheio de espinho,                          Terás que buscar habilidade                                  ao chocar-se com a realidade                                 e sentir a falta de carinho.

Ao buscar sua própria história,                               a qualquer hora pode chegar a paz,                      e o homem caído se  levanta e refaz                      o sonho perdido em sua memória.

O sofrimento parece eterno                                    se dentro da imaginação                                         estais no centro do inferno,                                   

porém, o sentimento da pulsação                         fará-te encontrar a realidade                         perdida no  caminho da solidão.

 

       Palmas, sons de instrumentos musicais, vozes, todos juntos e o clarão daquela noite, até surgir a luz do sol, símbolo das mentes clareadas. 

 

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      À tarde, o velho filósofo iria proferir o último discurso. Todos aguardavam aquele momento, especialmente o jovem, que não o via há algum tempo. Eis que chega a tarde e, com ela, o velho, entre todos saudado, indo direto à tribuna, contemplou a todos e começou a falar algo que lembrava Nietzche ou o próprio Zaratustra.

    "Estou aqui além do bem e do mal a falar sobre  a verdade e a mentira, temas do meu discurso.

     Seria a verdade uma mentira? Não  existiria a verdade se não fosse a mentira?  Será que a palavra é  a forma perfeita de mostrar a verdade?  

   A palavra é um conceito que serve para representar as coisas, é uma criação do intelecto humano. Mas antes do homem criá-la e antes do homem, o que existia e o que não existia?   

    Como podemos afirmar algo que não vimos apenas pela palavra?

      Houve o tempo em  que o homem não existia e poderá chegar o tempo em que não existirá. A verdade pode ser uma convenção para criar as leis, através de um tratado de paz que pelo menos deseje o fim de uma guerra de todos contra todos. De acordo com  essa leis, agora tudo é verdade ou mentira.

       A linguagem utiliza-se da palavra para fazer o irreal parecer real. Nomes são invertidos com o passar do tempo. Para os homens  não importa serem enganados, o que  importa é não serem prejudicados pelo engano.

      Mas nós queremos os resultados agradáveis da verdade que conserva a vida. serão aquelas convenções da verdade produtos do conhecimento e do sentido puro? Os significados e as coisas se coincidem?

     Pode o homem atribuir  ao egoísmo e à cobiça um maior valor para a vida? Reconhecer a mentira como condição de vida pode ser perigoso para enfrentar aquilo que acostumamos a valorizar."

      Assim falou zaratustra, assim falou o velho filósofo.

 

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         Uns três dias depois, quase todos haviam deixado a fazenda. Um novo encontro foi marcado para o próximo ano.

     Sentados em uma pedra, junto a uma pequena lagoa, o jovem e o velho estavam a contemplar o nascer  do sol. Mais adiante, a pouco mais de cem metros, do outro lado da lagoa, carneiros e cabras  pastavam solenes. De cá da pedra, ouvíamos o som dos gangolos pendurados nos pescoços daqueles animais, instrumentos cuja finalidade para os pastores é encontrar as ovelhas perdidas através do som. Tudo aquilo junto com o canto dos pássaros formava  uma orquestra vibrante a encher de paz aqueles  espíritos.

          O velho filósofo perguntou:

          "E  agora, para onde vais?"

        "Novamente para a floresta. Construirei uma cabana junto às árvores, cercado de mato e bicho. Chegar perto da conclusão de como tudo começou, do primitivo aos dias de hoje."

         "Será que é a melhor  maneira? Outros já o fizeram."

       "Farei o que meu coração pedir que eu faça. Há tempos senti a desigualdade entre as pessoas. Um dia todos foram iguais, numa época remota, quando eram selvagens e não haviam inventado o estado, as leis, nem mesmo a palavra."

       "Vais estar aqui no próximo encontro?"

      "Sim. Falarei sobre o que descobrir, mesmo sabendo que não há nada de novo."

        "Estaremos à espera."

 

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       Dois dias após, partiu de mochila nas costas. O velho filósofo ficaria a esperar, levando uma vida de pastor de ovelhas, preferia ficar ali, num meio termo, uma casinha no campo com acesso aos meios de comunicação e transporte para a cidade.

    O jovem atravessou rios, estradas abandonadas, vales, serras. Pensou no velho em que se transformava e nos jovens das próximas gerações que ainda veria discutindo sobre o destino do universo.

       Resolveu então parar no ponto onde chegou e quem sabe um dia retornar com as  respostas.