quinta-feira, 7 de março de 2013

CENAS METROPOLITANAS


                                                     O Percurso


          Quando pensava em retornar à pequena cidade, a distância parecia se dissolver no tempo. Segue errante por ruas de grandes prédios que ostentam o poder, sedes de bancos estrangeiros, teatros, bares, semáforos vermelhos para pedestres. Agora está verde. Abriu. Atravessa a rua. Pega um coletivo e segue para o trabalho. De segunda a sexta, há quatro anos o mesmo percurso, com algumas variações, pouca coisa mudou durante esse tempo.
          Eis mais um operário visionário, atento por onde passa simplesmente vê da janela do carro. Em pensamento juntando imagens de pequenas histórias ocorridas na época em que sempre fazia o mesmo trajeto. Pessoas conhecidas que acabou encontrando, incidentes, acidentes, meninos de rua, pedintes, polícia que persegue, ninguém sabe, ninguém viu se é bandido ou mocinho.
           De avenida em avenida, o ônibus segue e deixa o centro luxuoso para penetrar no subúrbio, nas comunidades mais pobres. Um pequeno prédio com letreiros luminosos e cartazes de mulher nua indicam as atrações. É um teatro pornográfico. Passa perto de uma igreja que ocupa um imenso quarteirão, cujo pastor fundador mora em outro país, e quando vem, chega transportado por um helicóptero que paira no heliporto, no teto da igreja, construído especialmente para as vindas de seu ministro supremo descer do céu, enquanto embaixo, ao redor do prédio, vê-se espalhada a miséria, entre ambulantes, moradores de rua, lixo, sacos de pipoca pelo chão, palitos de picolé, cobertores sujos, jornais velhos, em meio a isso, fiéis nas filas para os ônibus lotados de carentes por uma palavra de conforto, por isso notam nas palavras do ministro, o refúgio.
       A igreja passa, ou seja, o ônibus passa, depois para noutro ponto onde sobe um homem com deficiência auditiva, e começa a distribuir cartões com mensagens para vender aos passageiros por uma quantia simbólica. Pedro fica com um cartão com as seguintes mensagens: "eles não perdem por esperar, o dia do bem virá". O vendedor desce no próximo ponto, agradece ao motorista, deixando-lhe dois cartões de cortesia. 
       Entram agora três jovens com jeito de quem vinha de alguma balada, alegres e chapados, cantarolavam blues da década de cinquenta, a melodia que vem da gaita se junta à voz rouca do cantor que se desdobra para acompanhar o ritmo. Logo depois descem, deixam um pouco da alegria aos sérios senhores naquele nem e vai. O homem no banco da frente fala em tom divertido:
      "Enquanto uns estão indo trabalhar, outros vem da zueira."
          " É a vida." Disse o outro ao lado.
       Quando chegam à praça próxima à parada final, policiais armados dão sinal para que o ônibus pare. O coletivo é estacionado junto à calçada. Imediatamente, os policiais ordenam que todos desçam para que sejam abordados ,uma estação do metrô havia sido assaltada (isso foi dito depois por um deles) e por precaução fizeram a revista, pois algum dos assaltantes poderia estar a bordo.
     " Todos os homens desçam!" Disse um dos soldados.
          "Façam fila com as mãos para cima encostados no ônibus!" 
          Revistaram. Nada encontraram. Uma policial subiu e revistou as mulheres, depois todos liberados. Uma senhora sentada ao lado se mostra indignada com o ocorrido, devido a maneira como foi abordada. 
      "Só nos resta deixar que nos abordem? Sem incidentes, sem nada falar?"
        O operário pega o jornal e começa a ler, ficou um pouco chateado por ter sido tirado bruscamente de sua concentração, quando fazia aquilo que mais gosta ao viajar de coletivo: olhar pela janela e ficar olhando as paisagens surgindo adiante. Cantava baixinho canções que pareciam fazer parte de uma trilha sonora para a viagem. O carro para perto da fábrica e os operários descem. Os portões se fecham após a entrada dos funcionários. Instantes depois, o som do apito dispara e mais um dia de trabalho se inicia.
         Lá dentro, pensa sobre o fim de semana.
        "Hoje é sexta, último dia de labuta, vem aí dois dias de folga para andar livre e olhar a cidade, não vou fazer hora extra."
       No final de semana, quis ficar em casa no sábado para por algumas coisas em ordem. Enquanto se organizava ia pensando na vida que levava desde quando passou a trabalhar na fábrica, quatro anos dando o duro, ralando, entre barulho de máquinas, um longo período. Subitamente veio-lhe um pensamento decisivo que lhe tirou da retidão em que estava. Resolveu abandonar o trabalho e ser livre.
         Naquele contexto em que se encontrava não havia modo de melhorar a condição do operário. Sentia-se oprimido, na retaguarda, sem defesa, a maioria dos trabalhadores sem consciência política, a mais-valia, a exploração do homem pelo homem em benefício do acúmulo de capital. Pensou:
          "Não doarei mais meu sangue."
          Não foi mais trabalhar. Ao terceiro dia apareceu e pediu demissão. Estava livre.
          Depois fez a viagem que sempre desejou e parecia ter esquecido. Foi para Cuba cantar e dançar salsa.


                            Jardim Falcão 
               ou A Batalha de 22 de Julho

       Seu Marcolino veio da Paraíba afim de passar alguns dias com seu filho, de quase trinta anos de idade, que vivia há um certo tempo em São Bernardo do Campo, região metropolitana da grande São Paulo que desde os anos cinquenta atraiu milhões de nordestinos, gente que deixou sua terra natal em busca de melhores condições de vida na grande cidade.
         À custa de muito trabalho, o filho de Seu Marcolino comprou aquele terreno que tanto sonhara, para construir sua morada e, enfim, ficar livre do aluguel. Seu pai viera para ajudar no acabamento. Depois da casa pronta, com todos lá dentro morando, netos, nora e o seu filho, uma coisa lhe incomodava: após mais de dois anos de existência do Jardim Falcão, situado em um lugar considerado como área de proteção ambiental, próximo ao manancial do alto Tamanduateí-Billings, em S.B.C., a justiça determina que a vila deve ser desocupada, todos os moradores das centenas de casas deveriam sair. Há algum tempo já se vinha falando nisso, mas agora as pessoas sentiam mais de perto o problema.
             O dia marcado para a desocupação se aproxima.
      O povo se mobilizou contra tal determinação judicial, recebeu o apoio de diversas entidades, políticos, religiosos e pessoas comuns que mesmo não sendo moradores do Jardim Falcão, aderiram em favor das famílias que, com muito esforço, construíram seus lares.
         Na noite anterior ao dia marcado  para a derrubada, moradores ficaram de vigília em frente ao bairro, preparando-se para enfrentar a tropa de choque da polícia. Montaram barricadas, acenderam fogueiras, armaram-se de paus e pedras, tentando fechar as ruas que davam acesso ao lugar.
         Por volta das seis horas do dia 22 de julho de 1998, os primeiros carros de polícia começaram a chegar. Parecia um desfile militar.
          Às sete e trinta, chega a tropa jogando bombas de gás lacrimogêneo para dispersar as pessoas que tentavam barrar a passagem. Numa rua ao lado, havia uma multidão que apenas olhava os acontecimentos e foi dispersada à custa de bombas. Naquele momento, notou-se a primeira pessoa ferida: um jovem de aproximadamente treze anos de idade que acompanhava seus pais. Esse garoto teve um corte na parte interna do pé esquerdo, acima do calcanhar. Foi levado imediatamente ao pronto-socorro.
          A tropa de choque consegue afastar as pessoas em frente à rua que dá acesso ao Jardim Falcão. Ficou um clima de guerra civil com a polícia pronta para evacuar, de qualquer maneira, a área ocupada pelos moradores.
          O grupo que tentava defender a vila por dentro ficou cercado pelos soldados feito cães mandados a serviço do governo. Os policiais foram para o outro lado onde havia outra entrada.
      Gente tentando defender suas casas permaneciam a postos como que acuados pelo fogo de um dragão, a tropa os encurralava, atirava balas de borracha, mais bombas e gás. Alguns saíam feridos nos braços dos companheiros, cortes devido às explosões ou às quedas no corre-corre, fugiam de um lado para outro com medo de serem atingidos.
          A vila ficou sitiada. Moradores e voluntários ainda resistiam  à ofensiva, mas era difícil vencer, armados apenas com pau e pedra. A cada pedra lançada, vinham balas e bombas como resposta. Tiros de fuzil para cima, armas apontadas aos repórteres que faziam a cobertura, contra quem assistia a batalha, com a finalidade de amedrontar para ninguém mais entrar na luta.
          Uma mulher moradora do Falcão transformou-se em símbolo da resistência, ao ficar em cima da laje de sua casa, atirando tijolos contra os homens fardados. Um homem aparece com os punhos cortados, atingido pelos fragmentados de uma bomba. Homens, mulheres, crianças, choravam desesperados ao verem-se invadidos, expulsos como bandidos. Eram trabalhadores que haviam adquirido os lotes a soldo de muito esforço pessoal.
            Há algum tempo vinham sendo avisados que as casas iriam ser derrubadas, mas ainda procuravam manter a esperança de que tal resolução não fosse cumprida, pois a vila situava-se entre outras áreas totalmente urbanizadas, além disso, havia muitas casas construídas, todas em alvenaria, e os lotes foram comprados. Porém, veio a tropa de choque. Armada para desalojar de qualquer jeito os habitantes. Mulheres saíam com crianças no colo, de sacolas nas mãos, retirando, às pressas, seus pertences.           
             Por volta das treze horas, as últimas pessoas resistiam com uma bandeira branca defronte à polícia armada com escudos de proteção, rifles e bombas. Para sair do Jardim Falcão, restava uma ponte estreita sobre um córrego, onde dava para  passar apenas duas fileiras de gente. Alguns corriam ao atravessar a ponte, entre eles, um velho de mãos dadas com uma criança. Enquanto os rendidos precipitavam-se a correr de encontro à única saída, outra bomba foi lançada, o velho correu para o lado sem soltar as mãos do menino, abaixando-se atrás de uma moita, outros caíam no córrego sujo. Subiu uma enorme nuvem de fumaça a encobrir tudo. Ninguém via nada. Expulsão e brutalidade.
            Durante todo o dia a batalha continuou. Mesmo depois de expulsos, moradores contra-atacavam da forma mais possível, mas não deu para mais resistir. Às quinze e trinta, caminhões da Prefeitura estavam retirando os móveis e objetos pessoais daqueles que viam do lado de fora, as moradias esmagadas pelos tratores semelhantes a monstros pré-históricos
         Um dia após o conflito, foi decidido em assembleia popular que seria feita uma caminhada de protesto, até o Paço Municipal, em apoio aos ex-moradores do Jardim Falcão. Depois desse acontecimento, surgiu a seguinte indagação: como ficarão os agredidos que perderam seu teto, que viram o sonho de anos e anos desfazer-se em questão de horas? Essa resposta queremos da parte de quem promoveu tamanha barbaridade em nome da preservação do meio ambiente e não deu importância aos seres humanos que também fazem parte desse ambiente.
            Em meio aos escombros, uma senhora idosa, de cabelos brancos, sentada naquilo que restou, no deserto de tijolos e concreto quebrado. Próximo à senhora, Seu Marcolino, desolado, olhava o filho, a nora e os netos, sem teto, sem ter para onde ir. 



                     Um retirante Abandonado

   Domingo à noite resolveu andar. Andar por aí, descobrir um bote para ingerir líquido estômago adentro. Na calçada, uma pedra, tropeçou, caiu. Desmaiou sem ninguém para acudir. Começou a sonhar. Uma estrada encharcada, a água impedia a passagem. Um tropeiro do outro lado também queria passar, esperou até o sol raiar e ali, com sua tropa montou acampamento.
       Os moradores da vila do lado de cá comercializavam produtos diversos entre aqueles viajantes, desde toalha de banho até bateria de rádio, picolé, uma variedade. Isso acontecia uma vez ou outra quando a água vazava sobre a ponte. Certamente o lucro aumentava para aquele que de uma forma ou de outra vivia do comércio, tempo de fartura, época de guardar mantimentos para possíveis momentos de seca.
      Até que um dia, o governo resolveu aumentar aquela aguada, construindo uma grande barragem, fez com que a região se transformasse em um grande lago que encobriu muita terra, árvores, casas, animais acuados, em nome do combate  à seca. Muitos perderam suas propriedades, não foram indenizados, apareceu gente de mais dinheiro para ocupar as terras na margem da represa. Os repentistas cantavam dizendo que o mundo estava se enchendo de água, o mar a cada dia engolia um pedaço da praia.
      A humanidade caminha e tropeça. Talvez estejamos em tal época onde o homem precisa se levantar, bater poeira e recompor-se perante o universo. Lá se vai o violeiro levando consigo histórias, em cantigas da Idade Média dentro de um contexto modernizante, em um país contraditório a lutar para sair do atraso colonial e entrar pela porta da frente na contemporaneidade.
        Como a represa que alaga querem encobrir culturas e lendas. Tempos novos, novos moradores em um lugar de conflito entre o invadido e o invasor, o invadido é expulso e oprimido, para tornar-se depois um despossuído, um sem terra. O repentista entoava seu canto: "que seja justa a divisão, quebrem as regras desse mundo cão. De Anchieta a Lampião, aos dias de hoje, ó cidadão."
       Igual um vídeo-clip, a cena era surreal. Um homem que se levanta, que se refaz após o tombo. Em sua história ia pensando, na madrugada da capital. Aproxima-se do viaduto em que mais uma vez iria pernoitar. De bar em bar, ruas desertas, compridas e enladeiradas. Festejos aos jogos olímpicos, herança de tempos coloniais, gente que ainda falava da escravidão como sintoma da maldição de Cam. Hora de acordar. o dia amanheceu e não se deve dormir na rua em plena luz do dia.
     Hora de queimar a lata. Tem macarronada. O macarrão está pronto, no jeito de colocar o molho. Eis que surge de repente, uns homens de preto, dizendo serem fiscais da municipalidade. Levaram o almoço quando ia ser servido, o companheiro que preparava o molho de tomate se estatalava no chão de tanta fome, chorava sem lágrimas, enquanto o outro o ajudava a sentar-se e mais outro falava:
         "Nós não temos para  onde ir, doutor! Jogaram fora nossa comida, era o que tinha para hoje."
        Falava isso de frente à câmera de televisão para à noite passar no jornal nacional para o povo ver. A discussão política não deve  ficar apenas no plenário ou em palanques, deve partir para as ruas. Pobre País onde falar de igualdade de direitos é utopia. Até quando suportar tanta usura, tanto individualismo, tanta covardia.
      O retirante perdeu sua terra e agora aumenta o número de indigentes na grande cidade. No sonho percebe que tem direito à fatia do bolo, embora sinta desânimo diante daqueles que desviam os olhos da miséria e dizem que Deus fez o mundo assim, com ricos e pobres. Perdeu-se na imensidão da cidade, nos labirintos tortuosos, não se sabe em qual viaduto está morando, se ainda sonha com a terra distante.
        Em cada mendigo que vejo na rua, tento enxergar aquele que um dia desapareceu. Espero que o retirante não tenha perdido a esperança e esteja lutando para que dias melhores virão.