Essas poesias fazem parte da série A Semeadura:
A Semeadura
A vida da gente
é uma semeadura,
o campo semeado
é pura fartura,
cada qual almejado
em sua cultura.
Plantar, colher, acordar
quando o galo canta,
faz parte do cotidiano
da pessoa que planta,
a vida sempre evolui
e a horta se adianta.
No cérebro do arquiteto
foi jogada uma semente,
encontrou terra fértil
e uma voz dizendo: tente!
... uma planta nasceu
brotada na mente.
Os louros da vitória:
ver a construção erguida,
a plantação florou, o homem colheu,
na feira, ainda teve saída.
Melhor que isso é ter
força e fé na vida.
O Livro
Na mente poética
fervilha a palavra,
mãos operárias
fazem o livro
que chega ao leitor,
quando deixa de ser
tão-somente matéria
ao transformar-se
em alimento da alma.
Se o poeta semeia livros,
o gráfico prepara a terra
para a semente da mente
do poeta, enquanto o leitor
colhe os frutos da leitura.
Seis da Tarde
São seis horas da tarde!
Vou andando por aí;
na cabeça, lembranças
do que nunca esqueci.
Sonhos engavetados,
guardados no porão
dessa cabeça louca,
tão cheia de solidão.
Sigo pensando na vida,
descobrindo a razão;
a memória se aquece,
jardim que floresce,
luzes na escuridão.
Se Eu Fizer Uma Prece
O que acontece
Se eu fizer
Uma prece?
Até parece que eu
Só posso ser visto
Como um ateu.
Por não ir à igreja,
Dizem que não tenho
Um Deus que me proteja,
Por não ter partido,
Dizem que sou
Descomprometido,
Por fazer pouco,
Chegam a dizer
Que sou louco.
Quando faço bastante,
Ouço falarem:
Ele é tão distante!
Esperar ou ir à luta?
Melhor mesmo
Continuar a labuta.
A Planta
Molha a planta
Para o fruto crescer!
Molha a horta,
Molha a roça!
Se ninguém molhar,
Rezarei para chover.
Bom
Bom é estar
Em harmonia,
Sentir, respirar
Toda energia.
Manhã bem cedo
Ir para o roçado;
Em noite de luar,
Xote e xaxado.
Sapo na lagoa
A coachar, a coachar...
Todos numa boa:
Quá, quará, quá, quá.
Um Sem Terra
Como um sem terra
que quer a terra
para nela trabalhar,
um pobre poeta procura
mentes e corações
que o queiram escutar;
como a poesia sincera
que frutifica cabeças
e atinge o coração,
a semente jogada
transforma-se em alimento
para a população.
O Oleiro Cego
"O primeiro oleiro
foi Deus, quando
do barro fez o homem."
Palavras ditas
por um oleiro cego.
Do barro
o oleiro cego
fez sua obra
para que outros a vejam.
A Sede
Desde que fora capturada
no meio da caatinga
na terra do sol
não bebia
desde quando
a trouxeram prisioneira
mãos amarradas
pela vegetação agreste
passando por riachos
por cacimbas
Clara cora acuada
lembra de uma canção
do tempo de criança
que cantava quando ia
à fonte com a criançada
buscar o de beber
agora a sede
uma moringa cheia
sobre a mesa
depois de tanto andar
debaixo de um sol
abrasador
trovejava
interrogavam
interrogavam
nem mais coordenava
seus pensamentos
lembrava do que pensava ter esquecido
ou do que se esqueceu
recordações das brincadeiras dos meninos
a jogar água uns aos outros,
na cela, queria apenas um gole,
ao seu lado bebiam, molhavam-se
"há três dias
sempre a mesma
lenga-lenga"
sempre o mesmo recipiente
a água fresca negada
as perguntas
e Clara dizia:
"cumé qui num posso
falá de trabai?"
Do lado de fora sons
de trombetas e tambores
"O que você quer,
um pracatá ou um prequeté?"
"Ocê pode me dar um de beber?"
"Quer tchu ou quer tcha?"
"Tcha tcha tcha."
"Em quem vai votar?"
"Em Limpo?"
"Por que?"
"Pro mode qui parece ser pessoa digna."
Deixa-se cair
a moringa
o líquido escorre
percorre riacho
sobre o móvel
e pequenas cachoeiras
e banhos de rio
não voltara a casa de seus pais
era como se lá estivesse
lá fora na rua
bombas, fogos de artificio
nem era noite de São João
não havia certeza
há quanto tempo
morria de sede
num repente aparecem
os camaradas
sentiu molharem seu rosto
levantaram-na
na rua
comemoração
festa
gotas de chuva
terça-feira, 11 de outubro de 2011
terça-feira, 4 de outubro de 2011
Histórias De Um Certo Povoado
As histórias aqui postadas podem ser de ficção ou não-ficção.
O Surgimento
Eram duas casas. Uma defronte a outra ao final da ladeira. Na casa amarela havia uma vendinha, duas portas ao lado onde viajantes paravam para comprar ou trazer mantimentos, beber cachaça, pitar e conversar fiado. A outra casa era bem maior, com várias portas e janelas, avarandado e pilastras, ali o pai armava a rede, e em noites de lua cheia ficava a contar histórias que faziam a meninada parar com as brincadeiras e prestar atenção ao caso.
A segunda grande guerra havia acabado há uns cinco anos, mas naquelas paragens ninguém comentava sobre tal acontecimento, tão distante daquela gente a passar por ali montada em burro, transportando todo tipo de mercadoria necessária para a subsistência de todos. Cereais, açúcar, pano, talheres, farinha, rapadura, brilhantina e tudo mais que fosse preciso. O movimento aumentava na venda onde tropeiros comiam e descansavam. De repente, um menino da casa grande voltava chorando do mangueiro, após cortar-se abaixo do joelho no arame farpado, quando tentava subir na cerca. A mãe chegava à varanda, assustada, raiava com o moleque que corria para a cozinha, onde a preta velha vinha e lhe colocava o curativo.
Dentro da venda, o violeiro cego tocava e cantava, sentado junto ao balcão, quando uma réstia de sol trespassada do telhado, atinge em cheio o seu olho esquerdo, causando a leve impressão de que um foco de luz jorrasse dos seus olhos. Quem percebia isso era o viajante de mala em punho, estava indo para o sul, que entrou e disse "boa tarde". O estranho cumprimentou a todos no recinto e pediu ao bodegueiro que lhe servisse uma bebida, elogiou as músicas executadas pelo cantador, pagou cachaça aos fregueses presentes, cantou e fez amizade, ficou mais algum tempo, obteve informações sobre o caminho a seguir, depois se foi antes que a tarde findasse. O vulto daquele homem desaparecia enquanto descia a ladeira a uns cem metros da venda. A senhora na cadeira de balanço, a mocinha na janela, os meninos continuavam a brincar, os adultos sentados na calçada ou selando cavalos, apertavam os arreios.
Em certo dia, alguém teve a ideia de criar um estábulo para ponto de apoio. O filho mais velho do bodegueiro construiu um barracão, e ali os tropeiros deixavam os animais, enquanto se divertiam contando histórias. Falavam sobre a estrada de rodagem sendo construída, cortando a velha estrada um pouco mais à frente, próximo daquela propriedade. O progresso começava a chegar, trazia automóveis que levantavam poeira. Um cisco cai no olho do boiadeiro ou foi a fumaça do cigarro que fez uma lágrima rolar, ele limpa os olhos com o lenço que tira do bolso do colete, em seguida fala.
" Os automóveis estão chegando. Logo estarão nos substituindo no transporte do gado. Em nosso lugar o motorista sozinho levará toda a boiada, que só tem de descer e subir no carro."
O bodegueiro entra na conversa.
" Mas moço, isso ainda vai demorar prá acontecer."
" Sei não, Seo Neli, sei não..."
O boiadeiro ri, pede outra cachaça e passa a bater com as palmas das mãos, acompanhando os versos jogados pelo ceguinho ao som da viola. Sem alterar o ritmo todos começam a cantar.
Enquanto isso, a senhora na cadeira de balanço matutava. A preta velha é ótima cozinheira, de tradição, sua mãe havia sido escrava da família nos tempos do imperador, quando conseguiu a carta de alforria, preferiu ficar e continuar trabalhando na casa, pois não teria lugar para ir. Mais tarde engravidou-se de um ex-escravo que ganhou o mundão de Deus, foi embora e nunca mais voltou. A criança, que hoje é a preta velha, nasceu e cresceu recebendo o carinho dos pais da senhora, aprendeu com a mãe os segredos da culinária. A mãe faleceu e Pretinha, assim era chamada, passou a ser a titular na cozinha. Quando a senhora se casou, resolveu trazê-la consigo. Agora, a senhora pensa em montar um restaurante, o lugarejo cresce a cada dia. Construíram uma pousada para os viajantes mais distante do estábulo do mesmo lado da casa grande.
Assim foi crescendo. De repente brotou, em formato de pracinha, casas frente a frente em um quadrado, no planalto acima da ladeira. Em determinado ponto onde a estrada entortava pararam de construir mais residências, mais tarde é que abriram ruas até a margem da estrada de asfalto.
Após a construção da pousada, novas ideias surgiram, novos viajantes, os primeiros caminhões a trafegar pelo novo trecho da BR, ligando aquele povo à região Sudeste. Os paus de arara apareciam cada vez mais, vindos de regiões que sofriam a devastação da seca. Era o fenômeno do êxodo rural, camponeses nordestinos em busca de trabalho na indústria paulista. Em um desses paus de arara, vinha um casal de retirantes a procura do que fazer para ganhar dinheiro e seguir viagem. O homem tinha o ofício de barbeiro, pegou um dia de feira, conseguiu trabalho. Foi aprovado. Arrumaram-lhe uma tenda e lugar para ficar. Ali passara a morar.
A mocinha na janela fora estudar na cidade para voltar professora, o menino que se cortou no arame olhava os automóveis passarem e a senhora agora pensava em criar uma quermesse e construir uma igreja. O posto de gasolina, que fizeram próximo à pista fez com que o povoado crescesse de encontro à margem da estrada, ruas foram projetadas dando o aspecto de vila. O filho mais velho do bodegueiro dono do estábulo também criou a feira e, em seguida, o local passou a ser ponto de encontro de agricultores para venda ou troca de seus produtos. Pessoas de vários lugares distantes e povoados próximos fizeram o arraial. De duas casas passara a oito ruas. A mocinha voltava da cidade formada em magistério e passou a lecionar, o menino cuidava das ovelhas e ouvia o barulho dos carros ao longe, sonhava. Continuavam suas vidas. Eis aqui uma história que surge, de como surgiu ou de como ficou só naquilo, um simples povoado à beira da estrada. A igreja, o campo de bola, a feira, a quermesse, o cinema e as primeiras casas no marco zero do arraial.
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Em dia de feira, o ceguinho proseia, faz versos, perpetuando histórias para os ouvidos atentos dos viajantes. Romeiros em direção à Bom Jesus da Lapa acabam de chegar em um caminhão com cobertura de lona e tábuas de um lado a outro da carroceria, adaptadas como bancos, senhores de chapéus enfeitados e as senhoras de lenço. O som da viola embala as noites, o soar da canção embola-se agora em meio às ladainhas, excelências nas bocas dos pagadores de promessas, velas acesas, a cera derretendo, escorrendo por entre os dedos. Os habitantes reverenciam os peregrinos vindos das brenhas do sertão. O rapaz que um dia foi o menino que cuidava de ovelhas, magnetizado, subiu no caminhão e se mandou sem despedidas, não mais voltou. Dizem que pegou o gaiola no São Francisco e rumou para o litoral .
Assim que o rapaz partiu, chegou um grupo de uns dez motoqueiros, todos de Harley-Davidson, para abastecerem na única bomba de gasolina que há no posto, depois deram voltas pelo povoado, brincaram com as máquinas para o deleite de todos ali presentes, depois se foram. Quando saiam, um deles que havia sentado no banquinho da praça para ler, acabou deixando um livro, não se sabe se esqueceu ou se foi de propósito. Alguns moradores tentaram avisar, mas os motoqueiros não ouviram. O proprietário da venda ainda gritou: "o livro". Os homens das motocicletas acenaram alegres, agradecidos pela recepção, deixaram o livro.
A história de Kafka caiu nas mãos do escrivão, porque ali ninguém tinha ouvido falar sobre aquele autor, nem sabiam do que se tratava, quanto mais entender daqueles assuntos. Depois de passar de mão em mão, o livro foi entregue aquele funcionário do cartório, que olhou a capa, leu a orelha e também nada entendeu. Guardou o escrito junto aos arquivos de registros sem interesse de ler algum dia. Por lá o livro ficou por muito tempo até o dia em que o poeta apareceu a buscar histórias e quando folheava algumas páginas, deparou-se com "A Metamorfose".
O poeta foi até a mesa onde se encontrava a antiga funcionária de óculos na ponta do nariz e soube da história, de como aquele livro parou naquele lugar. A senhora pensou várias vezes em se livrar de tal objeto, pois no cartório o que interessava eram os livros de registros de nascimento, escrituras e alguma noção da constituição, além da boa escrita, o que mantinha seu emprego. A senhora notou o interesse do jovem e deu-lhe a transformação de presente.
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"O caipora fez o menino se perder, foi preciso que trouxessem fumo para presentear e quebrar o encanto."
Adentraram pelo povoado, entre olhares curiosos das janelas e das mulheres a catarem piolhos nas calçadas ou fazendo cafuné. Eram três. Souberam mais tarde que fugiam da repressão militar. O ano é 1964. Estranhos personagens para as pessoas da vila, que logo angariaram a simpatia dos mais novos que se interessavam por assuntos políticos. Os mais idosos os veem de forma desconfiada.
"Parece que são comunistas!" Diziam entre si.
Surgiram boatos espalhados entre as crianças, diziam que eram tiradores de sangue, papas-figo, criações para afastá-las, desde pequenas, do que chamavam ideias subversivas . Quem as inventava ninguém sabia, mas logo eram disseminadas. Depois apareceram outros tipos de perseguição, a repressão aumentou e os visitantes foram denunciados ao governo, por conta da influência que as ideias socialistas e libertárias causavam no modo de vida das pessoas. Os pequenos agricultores se organizavam em cooperativas, falavam de reforma agrária para se protegerem do latifúndio. Impedidos pela ação do exército nacional que veio à procura dos líderes do movimento, chamados de terroristas pelo regime. Para os militares, os comunistas tentavam desestabilizar a "harmonia implantada" pelo governo recém fundado. O verdadeiro terror começava.
A essa altura, os três visitantes estavam a uns vinte quilômetros, fora do arraial. A perseguição apenas se iniciara, muita coisa aconteceria mais tarde. Junto daqueles rapazes que um dia chegaram propagando suas ideias de justiça, foi o poeta libertário à procura de outras visões para fora do povoado.
"Quem dessa água bebe jamais esquece."
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Enquanto a caçada aos comunistas se iniciava, dois moradores, proprietários de dois quiosques ao lado da parada de ônibus, conversavam. Ouvia-se o som do rádio de pilha que vinha de dentro de uma das barracas. Era a música de um jovem cantor começando a fazer sucesso: O Calhambeque, de Roberto Carlos.
" Ô cumpade, o sinhô num quer comprar esse rádio? Vendo barato."
" Agora num dá, cumpade, posso não."
" Vendo por três."
Um viajante que descia do ônibus que acabava de estacionar no pátio ouviu a conversa entre os dois e falou.
" Eu pago cinco pelo rádio."
O vendedor disse taxativo:
" O aparelho não está à venda, moço."
Como o viajante insistia, o vendeiro questionava.
" Ué moço! Pelo que tô olhando, o senhor tá vindo de São Paulo. Por que que não trouxe um aparelho de lá?"
"Eu quero levar um presente para meu irmão que mora no Pernambuco , pensei em comprar uma lembrança durante a viagem, então ouvir a conversa de vocês e resolvi levar o rádio."
" Sinto muito, mas não posso vender."
" Eu pago seis."
" Vendo não, posso não."
O viajante, sem entender nada, caminhou em direção ao carro que começava a sair. O motorista buzinava para chamar os mais atrasados. Foi-se embora sem o rádio de pilha.
O outro quiosqueiro então falou.
" Num tô entendeno, cumpade. O sinhô num queria vender o aparelho? Por que num aceitou a oferta do paulista?"
" Ora essa, cumpade! Esse é o único rádio aqui por perto, se eu vendesse, o aparelho ia para bem longe e nóis ia ficar sem o nosso consolo de todo dia."
"Deveras! Tô entendeno."
" Ia ficar sem ouvir as cantigas."
" Eu num tinha atinado prá isso, cumpade!"
" E o futebol? Sem ouvir os gols do rei Pelé."
" Nós ia sentir muita falta."
" Pro sinhô, eu vendo. Quer comprar não?"
" Num dá não, cumpade."
" Três."
" Dois e negócio feito."
Nesse instante, chega Zé Prequeté. Pede uma cachaça e passa a contar a nova história.
O artilheiro, jogador do time do povoado, envolveu-se numa briga, por isso estava preso. Autoridades foram pedir ao delegado que o soltassem para que pudesse jogar no domingo. O delegado, comovido, também preocupado com a derrota do time, havia apostado grana alta, resolveu soltá-lo.
Porém, ao terminar o jogo, voltaria para a cela. Do xilindró para o campo de bola escoltado por dois soldados.
Para o delírio da torcida, o time do povoado venceu por 1 a 0. Gol de quem? Dele.
Após a partida, o delegado acabou permitindo que o artilheiro comemorasse junto aos seus companheiros, mas depois teve que voltar para o xadrez nos braços da galera, dos torcedores que o levaram até a entrada da cela.
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" Nem tudo que se lança ao fogo é para se queimar."
Um sábio entrou em um bar, em trajes simples, não eram novas suas vestes, mas estavam limpas.
Ao pé do balcão, alguém lhe falou que a vida é um eterno sofrer. O sábio disse que é necessário alegria de modo que se possa bem viver.
O mais novo não sabia que estava diante de um conhecedor de histórias e disse em tom didático.
" A gente precisa ter sonhos, viver a sonhar."
Naquele momento de emoção do mais novo, o sábio falou que sonhos todos tem, sonhos são reflexos de lembranças que surgem em nossas mentes quando dormimos, quando acordados são pensamentos. Cada qual pode saber o tamanho do seu sonho. Disse isso ao perceber que o mais novo misturava sonhos com desejos.
Aquele que mais parecia compreender o que o sábio havia dito transbordou-se em emoção e logo revelou o que foi sua vida desde a infância, quase chorou, disse como se estivesse diante de um confessor ou de um psicólogo ou de alguém que ali estivesse para não julgá-lo por qualquer desvio, mas falava com medo de ouvir.
Então o sábio percebeu que aquele que mais pareceu compreender não compreendia o quanto parecia, porém viu ali o gosto pelo diálogo. Mas o peregrino estava de passagem, era apenas um viajante que se despedia. Todos queriam lhe fazer uma presença, não houve mais tempo, o sábio se foi.
O homem ao pé do balcão teve receio de que a tristeza chegasse , o mais novo pensou em perguntar algo, mas não o fez e aquele que mais parecia compreender pensou em acompanhá-lo, acabou deixando para outro dia se ainda o encontrasse.
Foi quando o sábio atravessava a porta e partia em direção à estrada.
No bar, por alguns segundos, as vozes silenciaram, para que depois voltassem, barulhentas, alegres, ansiosas, contando aos que acabavam de chegar sobre o maluco andarilho que por ali havia passado.
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No sopé do morro, a cancela solitária no pasto, sem cercas que a ligassem, estava como que plantada, sem nenhuma função. Não havia nem mais a estrada em que passava o menino que buscava leite para vender no povoado. O pasto ficou sem a divisão, a cerca foi arrancada, mas deixaram aquela porteira que tanto abriram e fecharam.
Por ali passaram tropeiros que traziam produtos a serem comercializados. A feira cresceu, o povoado transformou-se em arraial, passou a distrito, já pensam em emancipação. Deixaram de lado a porteira, retiraram as cercas, o mato foi crescendo e tomou conta, a cancela permaneceu. Visão que faz lembrar um quadro surreal.
Não abriram mais a porteira, não havia mais a necessidade de usá-la, os viajantes que subiam o morro, desciam pelo outro lado e seguiam o caminho do sertão. Muito antes do início do povoado passavam por aquelas paragens, entre a mata atlântica e a caatinga, pessoas que se aventuravam a ir além das margens dos rios, pesquisadores, escravos fugitivos à procura de quilombos. Nesse tempo ainda não existia a cancela, que é do tempo das duas primeiras casas.
Da baixada, vê-se bem adiante, a BR na curva. Os carros não demoram a passar como antes, já não são poucos. De um lugar plano no alto da serra, alguém olha o aglomerado de casas. Quem tudo percebia era um maluco de estrada que muitas histórias escreveu, outras se perderam no caminho.
Do alto olhava a porteira abandonada. Parecia um portal entre mundos paralelos, sempre fechado, nunca se via ninguém abrir, até aparecer um velho de barbas longas que a abre, por ela passa e segue em direção ao topo. Lá de cima, nota-se um certo crescimento, dá para imaginar o tempo que passou.
O moço desceu. Passou novamente pela cancela, seguiu em direção às primeiras ruas, quando percebeu que o povoado agora era a cidade.
O Surgimento
Eram duas casas. Uma defronte a outra ao final da ladeira. Na casa amarela havia uma vendinha, duas portas ao lado onde viajantes paravam para comprar ou trazer mantimentos, beber cachaça, pitar e conversar fiado. A outra casa era bem maior, com várias portas e janelas, avarandado e pilastras, ali o pai armava a rede, e em noites de lua cheia ficava a contar histórias que faziam a meninada parar com as brincadeiras e prestar atenção ao caso.
A segunda grande guerra havia acabado há uns cinco anos, mas naquelas paragens ninguém comentava sobre tal acontecimento, tão distante daquela gente a passar por ali montada em burro, transportando todo tipo de mercadoria necessária para a subsistência de todos. Cereais, açúcar, pano, talheres, farinha, rapadura, brilhantina e tudo mais que fosse preciso. O movimento aumentava na venda onde tropeiros comiam e descansavam. De repente, um menino da casa grande voltava chorando do mangueiro, após cortar-se abaixo do joelho no arame farpado, quando tentava subir na cerca. A mãe chegava à varanda, assustada, raiava com o moleque que corria para a cozinha, onde a preta velha vinha e lhe colocava o curativo.
Dentro da venda, o violeiro cego tocava e cantava, sentado junto ao balcão, quando uma réstia de sol trespassada do telhado, atinge em cheio o seu olho esquerdo, causando a leve impressão de que um foco de luz jorrasse dos seus olhos. Quem percebia isso era o viajante de mala em punho, estava indo para o sul, que entrou e disse "boa tarde". O estranho cumprimentou a todos no recinto e pediu ao bodegueiro que lhe servisse uma bebida, elogiou as músicas executadas pelo cantador, pagou cachaça aos fregueses presentes, cantou e fez amizade, ficou mais algum tempo, obteve informações sobre o caminho a seguir, depois se foi antes que a tarde findasse. O vulto daquele homem desaparecia enquanto descia a ladeira a uns cem metros da venda. A senhora na cadeira de balanço, a mocinha na janela, os meninos continuavam a brincar, os adultos sentados na calçada ou selando cavalos, apertavam os arreios.
Em certo dia, alguém teve a ideia de criar um estábulo para ponto de apoio. O filho mais velho do bodegueiro construiu um barracão, e ali os tropeiros deixavam os animais, enquanto se divertiam contando histórias. Falavam sobre a estrada de rodagem sendo construída, cortando a velha estrada um pouco mais à frente, próximo daquela propriedade. O progresso começava a chegar, trazia automóveis que levantavam poeira. Um cisco cai no olho do boiadeiro ou foi a fumaça do cigarro que fez uma lágrima rolar, ele limpa os olhos com o lenço que tira do bolso do colete, em seguida fala.
" Os automóveis estão chegando. Logo estarão nos substituindo no transporte do gado. Em nosso lugar o motorista sozinho levará toda a boiada, que só tem de descer e subir no carro."
O bodegueiro entra na conversa.
" Mas moço, isso ainda vai demorar prá acontecer."
" Sei não, Seo Neli, sei não..."
O boiadeiro ri, pede outra cachaça e passa a bater com as palmas das mãos, acompanhando os versos jogados pelo ceguinho ao som da viola. Sem alterar o ritmo todos começam a cantar.
Enquanto isso, a senhora na cadeira de balanço matutava. A preta velha é ótima cozinheira, de tradição, sua mãe havia sido escrava da família nos tempos do imperador, quando conseguiu a carta de alforria, preferiu ficar e continuar trabalhando na casa, pois não teria lugar para ir. Mais tarde engravidou-se de um ex-escravo que ganhou o mundão de Deus, foi embora e nunca mais voltou. A criança, que hoje é a preta velha, nasceu e cresceu recebendo o carinho dos pais da senhora, aprendeu com a mãe os segredos da culinária. A mãe faleceu e Pretinha, assim era chamada, passou a ser a titular na cozinha. Quando a senhora se casou, resolveu trazê-la consigo. Agora, a senhora pensa em montar um restaurante, o lugarejo cresce a cada dia. Construíram uma pousada para os viajantes mais distante do estábulo do mesmo lado da casa grande.
Assim foi crescendo. De repente brotou, em formato de pracinha, casas frente a frente em um quadrado, no planalto acima da ladeira. Em determinado ponto onde a estrada entortava pararam de construir mais residências, mais tarde é que abriram ruas até a margem da estrada de asfalto.
Após a construção da pousada, novas ideias surgiram, novos viajantes, os primeiros caminhões a trafegar pelo novo trecho da BR, ligando aquele povo à região Sudeste. Os paus de arara apareciam cada vez mais, vindos de regiões que sofriam a devastação da seca. Era o fenômeno do êxodo rural, camponeses nordestinos em busca de trabalho na indústria paulista. Em um desses paus de arara, vinha um casal de retirantes a procura do que fazer para ganhar dinheiro e seguir viagem. O homem tinha o ofício de barbeiro, pegou um dia de feira, conseguiu trabalho. Foi aprovado. Arrumaram-lhe uma tenda e lugar para ficar. Ali passara a morar.
A mocinha na janela fora estudar na cidade para voltar professora, o menino que se cortou no arame olhava os automóveis passarem e a senhora agora pensava em criar uma quermesse e construir uma igreja. O posto de gasolina, que fizeram próximo à pista fez com que o povoado crescesse de encontro à margem da estrada, ruas foram projetadas dando o aspecto de vila. O filho mais velho do bodegueiro dono do estábulo também criou a feira e, em seguida, o local passou a ser ponto de encontro de agricultores para venda ou troca de seus produtos. Pessoas de vários lugares distantes e povoados próximos fizeram o arraial. De duas casas passara a oito ruas. A mocinha voltava da cidade formada em magistério e passou a lecionar, o menino cuidava das ovelhas e ouvia o barulho dos carros ao longe, sonhava. Continuavam suas vidas. Eis aqui uma história que surge, de como surgiu ou de como ficou só naquilo, um simples povoado à beira da estrada. A igreja, o campo de bola, a feira, a quermesse, o cinema e as primeiras casas no marco zero do arraial.
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Em dia de feira, o ceguinho proseia, faz versos, perpetuando histórias para os ouvidos atentos dos viajantes. Romeiros em direção à Bom Jesus da Lapa acabam de chegar em um caminhão com cobertura de lona e tábuas de um lado a outro da carroceria, adaptadas como bancos, senhores de chapéus enfeitados e as senhoras de lenço. O som da viola embala as noites, o soar da canção embola-se agora em meio às ladainhas, excelências nas bocas dos pagadores de promessas, velas acesas, a cera derretendo, escorrendo por entre os dedos. Os habitantes reverenciam os peregrinos vindos das brenhas do sertão. O rapaz que um dia foi o menino que cuidava de ovelhas, magnetizado, subiu no caminhão e se mandou sem despedidas, não mais voltou. Dizem que pegou o gaiola no São Francisco e rumou para o litoral .
Assim que o rapaz partiu, chegou um grupo de uns dez motoqueiros, todos de Harley-Davidson, para abastecerem na única bomba de gasolina que há no posto, depois deram voltas pelo povoado, brincaram com as máquinas para o deleite de todos ali presentes, depois se foram. Quando saiam, um deles que havia sentado no banquinho da praça para ler, acabou deixando um livro, não se sabe se esqueceu ou se foi de propósito. Alguns moradores tentaram avisar, mas os motoqueiros não ouviram. O proprietário da venda ainda gritou: "o livro". Os homens das motocicletas acenaram alegres, agradecidos pela recepção, deixaram o livro.
A história de Kafka caiu nas mãos do escrivão, porque ali ninguém tinha ouvido falar sobre aquele autor, nem sabiam do que se tratava, quanto mais entender daqueles assuntos. Depois de passar de mão em mão, o livro foi entregue aquele funcionário do cartório, que olhou a capa, leu a orelha e também nada entendeu. Guardou o escrito junto aos arquivos de registros sem interesse de ler algum dia. Por lá o livro ficou por muito tempo até o dia em que o poeta apareceu a buscar histórias e quando folheava algumas páginas, deparou-se com "A Metamorfose".
O poeta foi até a mesa onde se encontrava a antiga funcionária de óculos na ponta do nariz e soube da história, de como aquele livro parou naquele lugar. A senhora pensou várias vezes em se livrar de tal objeto, pois no cartório o que interessava eram os livros de registros de nascimento, escrituras e alguma noção da constituição, além da boa escrita, o que mantinha seu emprego. A senhora notou o interesse do jovem e deu-lhe a transformação de presente.
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"O caipora fez o menino se perder, foi preciso que trouxessem fumo para presentear e quebrar o encanto."
Adentraram pelo povoado, entre olhares curiosos das janelas e das mulheres a catarem piolhos nas calçadas ou fazendo cafuné. Eram três. Souberam mais tarde que fugiam da repressão militar. O ano é 1964. Estranhos personagens para as pessoas da vila, que logo angariaram a simpatia dos mais novos que se interessavam por assuntos políticos. Os mais idosos os veem de forma desconfiada.
"Parece que são comunistas!" Diziam entre si.
Surgiram boatos espalhados entre as crianças, diziam que eram tiradores de sangue, papas-figo, criações para afastá-las, desde pequenas, do que chamavam ideias subversivas . Quem as inventava ninguém sabia, mas logo eram disseminadas. Depois apareceram outros tipos de perseguição, a repressão aumentou e os visitantes foram denunciados ao governo, por conta da influência que as ideias socialistas e libertárias causavam no modo de vida das pessoas. Os pequenos agricultores se organizavam em cooperativas, falavam de reforma agrária para se protegerem do latifúndio. Impedidos pela ação do exército nacional que veio à procura dos líderes do movimento, chamados de terroristas pelo regime. Para os militares, os comunistas tentavam desestabilizar a "harmonia implantada" pelo governo recém fundado. O verdadeiro terror começava.
A essa altura, os três visitantes estavam a uns vinte quilômetros, fora do arraial. A perseguição apenas se iniciara, muita coisa aconteceria mais tarde. Junto daqueles rapazes que um dia chegaram propagando suas ideias de justiça, foi o poeta libertário à procura de outras visões para fora do povoado.
"Quem dessa água bebe jamais esquece."
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Enquanto a caçada aos comunistas se iniciava, dois moradores, proprietários de dois quiosques ao lado da parada de ônibus, conversavam. Ouvia-se o som do rádio de pilha que vinha de dentro de uma das barracas. Era a música de um jovem cantor começando a fazer sucesso: O Calhambeque, de Roberto Carlos.
" Ô cumpade, o sinhô num quer comprar esse rádio? Vendo barato."
" Agora num dá, cumpade, posso não."
" Vendo por três."
Um viajante que descia do ônibus que acabava de estacionar no pátio ouviu a conversa entre os dois e falou.
" Eu pago cinco pelo rádio."
O vendedor disse taxativo:
" O aparelho não está à venda, moço."
Como o viajante insistia, o vendeiro questionava.
" Ué moço! Pelo que tô olhando, o senhor tá vindo de São Paulo. Por que que não trouxe um aparelho de lá?"
"Eu quero levar um presente para meu irmão que mora no Pernambuco , pensei em comprar uma lembrança durante a viagem, então ouvir a conversa de vocês e resolvi levar o rádio."
" Sinto muito, mas não posso vender."
" Eu pago seis."
" Vendo não, posso não."
O viajante, sem entender nada, caminhou em direção ao carro que começava a sair. O motorista buzinava para chamar os mais atrasados. Foi-se embora sem o rádio de pilha.
O outro quiosqueiro então falou.
" Num tô entendeno, cumpade. O sinhô num queria vender o aparelho? Por que num aceitou a oferta do paulista?"
" Ora essa, cumpade! Esse é o único rádio aqui por perto, se eu vendesse, o aparelho ia para bem longe e nóis ia ficar sem o nosso consolo de todo dia."
"Deveras! Tô entendeno."
" Ia ficar sem ouvir as cantigas."
" Eu num tinha atinado prá isso, cumpade!"
" E o futebol? Sem ouvir os gols do rei Pelé."
" Nós ia sentir muita falta."
" Pro sinhô, eu vendo. Quer comprar não?"
" Num dá não, cumpade."
" Três."
" Dois e negócio feito."
Nesse instante, chega Zé Prequeté. Pede uma cachaça e passa a contar a nova história.
O artilheiro, jogador do time do povoado, envolveu-se numa briga, por isso estava preso. Autoridades foram pedir ao delegado que o soltassem para que pudesse jogar no domingo. O delegado, comovido, também preocupado com a derrota do time, havia apostado grana alta, resolveu soltá-lo.
Porém, ao terminar o jogo, voltaria para a cela. Do xilindró para o campo de bola escoltado por dois soldados.
Para o delírio da torcida, o time do povoado venceu por 1 a 0. Gol de quem? Dele.
Após a partida, o delegado acabou permitindo que o artilheiro comemorasse junto aos seus companheiros, mas depois teve que voltar para o xadrez nos braços da galera, dos torcedores que o levaram até a entrada da cela.
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" Nem tudo que se lança ao fogo é para se queimar."
Um sábio entrou em um bar, em trajes simples, não eram novas suas vestes, mas estavam limpas.
Ao pé do balcão, alguém lhe falou que a vida é um eterno sofrer. O sábio disse que é necessário alegria de modo que se possa bem viver.
O mais novo não sabia que estava diante de um conhecedor de histórias e disse em tom didático.
" A gente precisa ter sonhos, viver a sonhar."
Naquele momento de emoção do mais novo, o sábio falou que sonhos todos tem, sonhos são reflexos de lembranças que surgem em nossas mentes quando dormimos, quando acordados são pensamentos. Cada qual pode saber o tamanho do seu sonho. Disse isso ao perceber que o mais novo misturava sonhos com desejos.
Aquele que mais parecia compreender o que o sábio havia dito transbordou-se em emoção e logo revelou o que foi sua vida desde a infância, quase chorou, disse como se estivesse diante de um confessor ou de um psicólogo ou de alguém que ali estivesse para não julgá-lo por qualquer desvio, mas falava com medo de ouvir.
Então o sábio percebeu que aquele que mais pareceu compreender não compreendia o quanto parecia, porém viu ali o gosto pelo diálogo. Mas o peregrino estava de passagem, era apenas um viajante que se despedia. Todos queriam lhe fazer uma presença, não houve mais tempo, o sábio se foi.
O homem ao pé do balcão teve receio de que a tristeza chegasse , o mais novo pensou em perguntar algo, mas não o fez e aquele que mais parecia compreender pensou em acompanhá-lo, acabou deixando para outro dia se ainda o encontrasse.
Foi quando o sábio atravessava a porta e partia em direção à estrada.
No bar, por alguns segundos, as vozes silenciaram, para que depois voltassem, barulhentas, alegres, ansiosas, contando aos que acabavam de chegar sobre o maluco andarilho que por ali havia passado.
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No sopé do morro, a cancela solitária no pasto, sem cercas que a ligassem, estava como que plantada, sem nenhuma função. Não havia nem mais a estrada em que passava o menino que buscava leite para vender no povoado. O pasto ficou sem a divisão, a cerca foi arrancada, mas deixaram aquela porteira que tanto abriram e fecharam.
Por ali passaram tropeiros que traziam produtos a serem comercializados. A feira cresceu, o povoado transformou-se em arraial, passou a distrito, já pensam em emancipação. Deixaram de lado a porteira, retiraram as cercas, o mato foi crescendo e tomou conta, a cancela permaneceu. Visão que faz lembrar um quadro surreal.
Não abriram mais a porteira, não havia mais a necessidade de usá-la, os viajantes que subiam o morro, desciam pelo outro lado e seguiam o caminho do sertão. Muito antes do início do povoado passavam por aquelas paragens, entre a mata atlântica e a caatinga, pessoas que se aventuravam a ir além das margens dos rios, pesquisadores, escravos fugitivos à procura de quilombos. Nesse tempo ainda não existia a cancela, que é do tempo das duas primeiras casas.
Da baixada, vê-se bem adiante, a BR na curva. Os carros não demoram a passar como antes, já não são poucos. De um lugar plano no alto da serra, alguém olha o aglomerado de casas. Quem tudo percebia era um maluco de estrada que muitas histórias escreveu, outras se perderam no caminho.
Do alto olhava a porteira abandonada. Parecia um portal entre mundos paralelos, sempre fechado, nunca se via ninguém abrir, até aparecer um velho de barbas longas que a abre, por ela passa e segue em direção ao topo. Lá de cima, nota-se um certo crescimento, dá para imaginar o tempo que passou.
O moço desceu. Passou novamente pela cancela, seguiu em direção às primeiras ruas, quando percebeu que o povoado agora era a cidade.
João Brabo No Cinema
Ademário Ferreira
Ademário Ferreira
Esse caso aconteceu no final dos anos sessenta. Uma das novidades que surge na vila é o cine-teatro. Contagiou a todos. Artistas famosos do teatro de revista vinham se apresentar naquele lugarejo e o cinema também era grande atração. Filmes como Tarzan, Hércules, Django, E O Vento Levou, entre outros, eram exibidos.
Estava em cartaz, O Dólar Furado, estrelado por Giugliano Gemma. Um bang-bang. João Brabo ainda não conhecia o cinema. Pelo nome do sujeito dá para perceber o seu grau de valentia. Gostava de andar sempre com uma arma no coldre, era do tipo que não levava desaforo para casa, mas no fundo, um cabra bom, respeitado por todos por não negar fogo no momento preciso. Esse valentão ouvia as histórias das películas, contadas com entusiasmo pelos seus colegas, mas não fazia ideia do que era.
Depois de tanto ouvir sobre o tal cine, João resolveu ir à noite, pela primeira vez assistir O Dólar Furado. A princípio, ele pensou que os atores estariam ali presentes por trás de um pano iluminado.
O filme passou a ficar bastante real para João Brabo, que coloca a mão no revólver no instante em que os bandidos em grupo atacam o mocinho. Então, ele começa a falar:
- Êpa! Aí é covardia. Um bando todo armado contra uma pessoa só.
- Êpa! Aí é covardia. Um bando todo armado contra uma pessoa só.
Mas logo se acalma ao ver o mocinho sacar os dois revólveres da cintura e derrubar os inimigos.
- Esse é dos meus! Falou João com certa euforia e aplaudiu.
Um rapaz sentado ao lado falou:
- Fica quieto, João! Isso é só filme, é tudo mentira.
João sabia que era filme, só não estava convencido que era mentira. Tinha lá suas dúvidas. "Que o sangue parece de verdade, parece". Assim pensou.
O mocinho recebe um tiro no peito, é salvo pela moeda de dólar no bolso. O bandido aponta a arma para a plateia. Naquele momento, João Brabo levanta-se da cadeira, saca a arma e começa a atirar contra a tela, escondendo-se atrás das poltronas, rolando pelo carpete nos corredores, atirava e gritava.
- Não se preocupe minha gente! Todo mundo abaixado! Em nossa terra, forasteiro nenhum bota banca.
Foi aquele panavoeiro. Continuou a atirar até acabar a munição. Então escutou o rapaz ao lado novamente dizer:
- Tu tá doido home, eu num tô falano que isso não é verdade?
- Num é o que, rapaz! Esses covardes atacam um só.
Acenderam as luzes e João continuou a gritar.
- Ué, foram embora. Voltem seus covardes! Aqui tem home, seus merda.
Veio o lanterninha, depois o gerente, juntaram-se todos ao redor daquele sujeito que provocou tanta confusão, tentando fazer com que ele compreendesse que aquilo era só cinema, que aqueles homens não estavam ali de verdade, era fotografia em movimento. Levaram-no até a tela, para lhe mostrar que por trás do pano não havia mais nada além da parede.
Até que o cara se convenceu e saiu sob os apupos da plateia.
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Toda vez que ouço a música Fio de Cabelo, cantada por Chitãozinho e Chororó, lembro-me de Lalai, que adorava essa canção. Quem foi Lalai? Chamava-se Eulália, mas a maioria das pessoas no povoado a conheciam pelo apelido. Uma cabocla, de aspecto indígena, cabelos pretos e longos, sempre de lenço, baixa, devota de Santa Luzia, tinha um oratório em seu quarto onde nunca deixava de fazer suas orações antes de dormir.
Na época em que ela chegou em Periperi, veio de uma região entre Jequié e Itiruçu, com seu marido, um senhor bem mais velho que ela. Fazia alguns serviços domésticos na casa dos meus pais, nesse tempo eu nem era nascido. Um dia brigou com o marido que foi embora carregando todos os documentos que ela tinha, nunca mais se teve notícia dele. Não quis mais saber de homem.
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Lalai
Ademário Ferreira
Na época em que ela chegou em Periperi, veio de uma região entre Jequié e Itiruçu, com seu marido, um senhor bem mais velho que ela. Fazia alguns serviços domésticos na casa dos meus pais, nesse tempo eu nem era nascido. Um dia brigou com o marido que foi embora carregando todos os documentos que ela tinha, nunca mais se teve notícia dele. Não quis mais saber de homem.
Acabou ficando em nossa casa, minha mãe arrumou um quartinho para que ali ela ficasse e ali ficou para nunca mais sair, com o tempo transformou-se numa pessoa da família, ajudou a criar todos os sete irmãos até a chegada dos primeiros netos. Buscava água, cozinhava, fazia um cuscuz gostosíssimo que ficou famoso, gostava de juntar o dinheirinho dela, fazia cocadas que mais tarde quando eu já tinha nascido ia vender na feira. Uma das coisas que eu gostava era de rapar o tabuleiro usado para cortar as cocadas.
Quando a televisão chegou em nosso lar, cativou logo aquela mulher que não sabia ler as letras, nem assinar o nome, mas assistia as novelas e filmes que entendia a seu modo e levava a sério as histórias, que ela vivia como se as personagens fossem bem próximas. Chingava os vilões, chorava com as tristezas, virava o rosto quando havia cena de beijo na boca, gostava das trilhas sonoras, a sua música de novela preferida e inesquecível foi Pavão Misterioso, composição de Ednardo para a novela Saramandaia. Um de meus irmãos, certa vez lhe deu de presente o Lp da novela, isso a deixou radiante, guardava, zelava daquele disco como uma joia rara, sempre pedia para que nós o colocássemos para ouvir na vitrola. Para assistir televisão, sentava bem juntinho ao aparelho de tv, ali ficava sua cadeira cativa, ninguém ousava tomar o seu lugar. Tinha todas as personagens em sua mente, quando a novela acabava e os atores surgiam em outra, dava uma dificuldade explicar que era outra história e que os atores representavam outras personagens, mas logo entrava novamente na história e começava tudo outra vez.
Numa ocasião, eu e minha irmã estávamos fazendo uma lição de casa sobre gramática, o assunto era Sinônimo e Antônimo. Como falávamos em voz alta e repetíamos sempre as palavras sinônimo e antônimo, Lalai pensava que falávamos de dois personagens da dramaturgia televisiva: Simone, vivida por Regina Duarte, na novela Selva de Pedra e Antonio, vivido por Tarcísio Meira, em Escalada. Sutilmente, ela entrou no assunto e perguntou: " Na escola vocês estudam também sobre o povo da novela?"
Os palavreados usados por ela nos divertia, eram vários, tais como: quando por algum mau feito: " antu de merda", quando ficava com raiva com as nossas pirraças: "onça trigue", quando pedia para nós irmos em algum lugar e não íamos... ficávamos parados: "tora de pau”, quando fazíamos de cínico: “lutrido” ou quando comíamos demais e queríamos mais: “barriga de samborá”.
Um longo tempo passou, Lalai se encontrava doente, vivia mais na cama, percebíamos que era chegada sua hora de ir para o andar de cima.
Pouco antes de sua ida, fui sozinho passar alguns dias numa roça de um parente. No primeiro dia andei a cavalo, fiquei pensando, conversando com os moradores locais. Só passei uma noite, no outro dia bem cedo, meu pai chegara de carro e, pelo seu semblante, percebi que veio para me buscar. Lalai havia falecido. Voltei com meu pai, calado durante toda a viagem para o último adeus.
Quando a televisão chegou em nosso lar, cativou logo aquela mulher que não sabia ler as letras, nem assinar o nome, mas assistia as novelas e filmes que entendia a seu modo e levava a sério as histórias, que ela vivia como se as personagens fossem bem próximas. Chingava os vilões, chorava com as tristezas, virava o rosto quando havia cena de beijo na boca, gostava das trilhas sonoras, a sua música de novela preferida e inesquecível foi Pavão Misterioso, composição de Ednardo para a novela Saramandaia. Um de meus irmãos, certa vez lhe deu de presente o Lp da novela, isso a deixou radiante, guardava, zelava daquele disco como uma joia rara, sempre pedia para que nós o colocássemos para ouvir na vitrola. Para assistir televisão, sentava bem juntinho ao aparelho de tv, ali ficava sua cadeira cativa, ninguém ousava tomar o seu lugar. Tinha todas as personagens em sua mente, quando a novela acabava e os atores surgiam em outra, dava uma dificuldade explicar que era outra história e que os atores representavam outras personagens, mas logo entrava novamente na história e começava tudo outra vez.
Numa ocasião, eu e minha irmã estávamos fazendo uma lição de casa sobre gramática, o assunto era Sinônimo e Antônimo. Como falávamos em voz alta e repetíamos sempre as palavras sinônimo e antônimo, Lalai pensava que falávamos de dois personagens da dramaturgia televisiva: Simone, vivida por Regina Duarte, na novela Selva de Pedra e Antonio, vivido por Tarcísio Meira, em Escalada. Sutilmente, ela entrou no assunto e perguntou: " Na escola vocês estudam também sobre o povo da novela?"
Os palavreados usados por ela nos divertia, eram vários, tais como: quando por algum mau feito: " antu de merda", quando ficava com raiva com as nossas pirraças: "onça trigue", quando pedia para nós irmos em algum lugar e não íamos... ficávamos parados: "tora de pau”, quando fazíamos de cínico: “lutrido” ou quando comíamos demais e queríamos mais: “barriga de samborá”.
Um longo tempo passou, Lalai se encontrava doente, vivia mais na cama, percebíamos que era chegada sua hora de ir para o andar de cima.
Pouco antes de sua ida, fui sozinho passar alguns dias numa roça de um parente. No primeiro dia andei a cavalo, fiquei pensando, conversando com os moradores locais. Só passei uma noite, no outro dia bem cedo, meu pai chegara de carro e, pelo seu semblante, percebi que veio para me buscar. Lalai havia falecido. Voltei com meu pai, calado durante toda a viagem para o último adeus.
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